A vez do cobrador

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Recentemente, Reginaldo fora acometido por uma angustiante sensação de solidão. Não tinha mais pais, seus irmãos estavam distantes, os amigos ausentes. Mas agora, sentado à poltrona diante da televisão desligada, a escuridão caindo, sentiu algo mais aniquilador do que a solidão. Suava frio, pressentindo o pior. De repente, um tipo sinistro e mal encarado colocou-se na sua presença, detendo-se entre ele e a porta. Vinha de punhos cerrados, a postura de quem se preparava para entrar em combate.

– Como entrou aqui?

– Reginaldo da Silva Neto – o intruso ignorou a interrogação, impondo-se com incisão impessoal, feito oficial de justiça a entregar notificação de causas alheias – Vim cobrar sua dívida. Buscar aquilo que me pertence.

Reginaldo calou-se. Olhou para o lado, em vão tentando ignorá-lo.

– Não finja que não me conhece. Há muito tempo você me procurou. Pegou emprestado algo muito valioso!

– Não sei do que está falando.

– Poucos anos atrás – o outro continuou – quando me procurou novamente, pensei que fosse saldar a dívida. Mas fui surpreendido por seu desejo de renegociá-la. Naquela vez fui paciente e aceitei conceder-lhe mais um empréstimo a título de rolagem. Mas agora não há mais como postergar. Não me alegro nem me angustio em dizer que, agora, é chegada a hora de fazê-lo pagar.

– Não tenho nada a lhe dar – nervoso, Reginaldo esquivou-se da figura desafiadora. Ficou olhando para a tela escura do televisor.

– Não me surpreende. Todos vocês, credores, dizem isso quando venho. Sempre negam a dívida! Mesmo assim, a grande maioria de vocês busca renegociá-la, como fez comigo daquela vez. Quando as condições são favoráveis, o negócio é fechado e o prazo da dívida é estendido. Como disse, não sou mau credor, ainda que não seja bom. Sou apenas neutro. Não vejo problema algum em renegociar dívidas, pois estou seguro de que, cedo ou tarde, elas sempre serão pagas integralmente. Pois esta é a lei a qual todos estão submetidos. Mas há casos em que os juros se acumulam, a dívida se torna exagerada, e só me resta vir saldá-la. Como agora devo fazer com você.

– Maldito! Não devo nada a você e a ninguém! Saia da minha casa agora mesmo!

E tentou se levantar, mas as pernas ficaram bambas e ele caiu de volta na poltrona. O outro manteve-se como estava, sem alterar sua pose impositiva. Reginaldo sentiu as pernas formigarem, o braço esquerdo também. O suor frio aumentou, a respiração ficou ofegante. O remédio, precisava tomá-lo! Levou a mão ao criado-mudo, engoliu um comprimido. O formigamento diminuiu, a respiração acalmou, mas o mal estar não passou.

– A negação é sempre a primeira reação de todo credor. Claro, quem deve tanto sempre tentará dar o calote! Mas é inútil. Pois como disse, a lei é inexorável. Primeiro vem a negação, depois o desespero, e somente por último a paz.

Aquelas palavras implacáveis fizeram o formigamento piorar. O suor encharcou-lhe a testa, a respiração acelerou, os olhos reviraram-se em busca de vãs esperanças. Olhou o frasco, pensando em tomar outro comprimido. Mas o médico lhe advertira a não exagerar na dose. Também seu celular não estava por perto para chamar socorro. Não havia mais o que fazer. O cobrador prosseguiu, exaltando-se:

– Veja você, miserável credor! Confia valores tão grandes a coisas tão pequenas quanto pílulas e receituários, feitos por outros tão imperfeitos quanto você. Gastam fortunas enormes com futilidades, e depois se surpreendem quando tal fortuna se esvai e o débito se torna impagável. A ignorância de vocês, maus pagadores, se resume à estupidez de querer eternizar o presente.

– Não – Reginaldo balbuciou.

– É sempre assim! O mesmo choro...

– Por favor – Reginaldo suplicou – Preciso de mais tempo.

– Para quê? Quanto mais tempo, mais juros, maior fica a dívida. No que você aplicou o adicional emprestado anos atrás? Em nada! Desperdiçou-o, a exemplo do montante inicial. É verdade que, quando chegam perto da falência, muitos aprendem a ser mais prudentes com as finanças. Aprendem a usar melhor sua riqueza aplicando-a no que interessa, ou seja, na edificação de coisas maiores do que si. Mas muitos seguem sendo tão irresponsáveis e imediatistas quanto antes, voltando a gastar tudo com futilidades. Tal foi o seu caso.

– Você não sabe de nada! Não é Deus para saber o que faço ou deixo de fazer! Não pode me julgar!

E sentiu o coração palpitar, o mal-estar escalando a níveis incontroláveis.

– Tolo... Neste tribunal, somente você pode julgar a si...

– Não!

– ...mas seu veredito pessoal não me interessa. No fim, julgamentos são igualmente fúteis! Já lidei com muitos credores, conheço bem como agem. Negação, desespero e só por último a paz. Quem usou sua riqueza com sabedoria tem menos dificuldade em negar e sofre menos. Mas quem a gastou com coisas inúteis sempre nega com mais firmeza e se desespera mais. É o caso da maioria, incluindo você...

O formigamento apertou. Mal sentia as pernas e o braço, o suor frio lhe lavava o corpo, o peito prestes a estourar.

– Você é cruel! – Reginaldo desesperou-se.

– Por favor. Já lhe disse, julgamentos são insignificantes. Não me atenho a eles. Apenas cobro. Há somente isso, dívidas e cobranças. Aprenda de uma vez, a vida é a negação da morte, e não o contrário! Harmonia é a contra-tendência temporária que sempre cede à tendência permanente, a da desordem. Algo tão valioso não pode ser estendido por empréstimos e mais empréstimos. A única maneira de fazê-lo é plantando sementes para serem colhidas pelos que virão. Mas não! Pensam que o sentido da vida está em apenas usufruir sua única riqueza até a esgotarem. Preferem gastá-la até o último tostão, sem se importarem em usá-la para se eternizar nas suas obras. É o erro de vocês, e só o percebem tarde demais. Mas é isso! O tempo acabou, tudo um dia sempre acaba! Você teve sua vez. Agora é a minha, a vez do cobrador.

E caminhou até o homem, que debateu-se e revirou-se na poltrona por alguns instantes, até sossegar. Após isso, o outro deu-lhe as costas e dirigiu-se até a saída.


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Quando completou o terceiro dia sem vê-lo, a faxineira do prédio temeu pelo pior. Afinal, lembrava da vez em que Reginaldo sofrera de um mal súbito e por pouco não morrera. Assim, chamou o síndico e outro vizinho para forçarem a porta. E tal como imaginaram, lá estava ele sem vida, estirado sobre a poltrona. Depois de tantos dias, sua aparência era péssima. Mas Reginaldo trazia na face um semblante de paz. Como lhe havia sido prometido.

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Cabra de Bigode - e outras históriasWhere stories live. Discover now