VINTE E SETE

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Eu não queria pensar em coisas idiotas e clichês, mas, quando se está enterrando seus pais e depois que não há mais lágrimas as serem jogadas fora — e todo o seu corpo dói e sua boca sempre está com um gosto ruim — você tem que começar a pensar em coisas diferentes, coisas que seus olhos capturam e que sua mente consegue processar. Um pássaro pousando e logo em seguida voltando a voar, nuvens fofas em um céu claro e torturantemente alegre e sons distantes de pessoas dizendo "sinto muito", "eles eram pessoas incríveis". Não adiantava sentir muito, eu sempre pensava quando alguém que eu só tinha visto uma vez na vida vinha apertar minha mão demoradamente. E também pensava que pessoas incríveis às vezes morriam primeiro. Em um momento o falatório acabou e depois disso dei um jeito da minha mente não se apegar a quase nenhum detalhe, lembro de ver, de sentir e de querer vomitar. Mas passei a maior parte do tempo prestando atenção em outras coisas sem serem flores, pessoas, areia e adeuses.

Tia Helena decidiu ficar conosco por três dias. Foram três dias insuportáveis e não me sinto nenhum pouco mal por pensar assim. Dias insuportáveis não porque ela lembrava minha mãe, mas porque ela lembrava — mesmo que inconsequentemente — que ela não estava mais ali, e que agora éramos apenas Breno e eu. — Mais aquela gata irritante.

Minha tia deixou uma montanha de comida para nós antes de ir embora, prometendo que se mudaria para morar conosco o mais rápido possível já que não podemos ficar sozinho quando nenhum de nós é maior de idade.

Na primeira noite em que minha tia se foi algo aconteceu. Algo ruim. Acabei por acordar com o braço em volta do pescoço, consequentemente com falta de ar. Meu corpo todo ficou em estado de alerta depois disso e não consegui mais dormir, fiquei me mantendo distraído até o relógio marcar quatro e meia da madrugada, depois disso, eu adormeci sem me dar conta.

Eu estava buscando algo em mim nos últimos dias, algo para o que sentir. Eu vasculhava dentro de mim, eu abria cada parte minha como gavetas cheias de lembranças, lembrava de coisas boas com meus pais, meus amigos e até momentos constrangedores que só eu sei. Lembrava de coisas que me deixavam irritados ou com medo. Mas isso não bastava, eram sentimentos tão momentâneos quanto uma brisa. Eu vasculhava inutilmente, e depois de um tempo à procura me pareceu inútil e entediante. Fiquei na minha, esperando às coisas virem até mim e não o oposto, eu estava cansado de correr atrás de qualquer coisa que fosse. Parecia, eu pensei uma tarde, que eu estava sentindo tudo estando atrás de um vidro especialmente grosso. Não alcançava nada, só observava.

Nunca me passou pela cabeça que algum dia eu estaria assim, me sentindo tão desesperado para sentir algo que me deixasse... as palavras são tão profundas que parecem mentira, mas eu estava desesperado por uma motivação para viver a minha vida como antes. Eu sei que, se eu falar isso em voz alta algumas pessoas escolherão não me ouvir, mas esse também é um ponto importante, não quero que as pessoas me ouçam. Há dias eu venho tentando ser invisível, e tentando achar como tornar isso algo natural, nada forçado. Ser invisível não significa que eu queira sumir, só significa que quero passar despercebido, estou com medo de ir à escola e receber olhares odiosos e de pena, estou com medo de sair na rua e mais algum vizinho vir me dizer o quanto meus pais eram incríveis e quanto eu devia estar sofrendo. Bom, eu não queria isso.

À noite eu estava me revirando na cama, de novo tentando pegar no sono como qualquer pessoa. Já tinha posto e tirado o lençol, já tinha mudado de lado e tirado a camisa. Eu não me sentia confortável. Peguei meu travesseiro e o joguei longe em um excesso de fúria. O travesseiro acertou meus bonecos na prateleira e os derrubou. Levantei-me com um pulo e bati à porta do quarto de Breno, torci para que ele ainda estivesse acordado às três da madrugada.

Quando ele pediu que eu entrasse soltei um suspiro aliviado.

— Estava dormindo? — Pergunto.

— Quase. — Ele coça os olhos e senta na cama, o rosto tomando um semblante preocupado.

Era a única pessoa por perto que tinha uma preocupação genuína comigo. Uma garra espinhosa apertou meu peito e me fez gemer de dor, porque agora sinto, com força e de repente, que estou prestes a desabar de tão pesado que meu corpo está. Me arrastei até a ponta da cama e pus somente metade do meu corpo ali, esperei um convite.

— O que foi?

— Não consigo dormir — digo.

— É só fechar os olhos e dormir. — Breno resmungou, mas dava para ver que não acreditava nisso também. Era algo que os pais diziam. Os nossos, não.

Não era só fechar os olhos e dormir. Dormir se tornou uma tarefa difícil porque algo serpenteia dentro de mim, algo que me deixa inquieto, é como uma corrente fria do mar, só que mais assustadora. Começa nos meus pés, eu balanço meus pés sem perceber, quando paro, os dedos das mãos começam a titubear ao meu lado e me esforço para parar também, mas não importa, sempre fico agitado e minha mente nunca cessa de perguntas

Será que amanhã vai ser um dia melhor?

Não sei se consigo...

Acho que amanhã tenho que falar com Dan.

Não posso ficar dormindo o dia todo amanhã.

Será que meus pais estão me vendo agora, sendo assim?

O que está acontecendo comigo, pelo amor?

... perguntas que me faziam ficar mais cansado. Sim, pensar me cansa, estou cansado de pensar e de questionar e de teorizar. CANSADO.

— Posso? — Perguntei não mais que um sussurro.

Breno não sabe — ou acho que não — mas se ele quisesse eu chegaria a implorar para dormir com ele, mesmo que no chão, ao lado da cama, só para não ter que voltar para o meu quarto.

Ele disse sim e eu me senti melhor, o máximo que consegui, o que não era muito.

Pela manhã ele me chamou para ir à escola e eu disse que não iria. Breno não insistiu e me deixou em sua cama onde dormi até o final da tarde, foi a melhor coisa que eu poderia ter feito. Dormir era um desafio, mas deixar de dormir era um ainda maior.

Agora ou Nunca (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora