A Grande Guerra e o Chamado

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Estamos no Grande Vale da Esperança, no entanto, ao contrário do que o nome possa sugerir se trata de um pequeno vilarejo na província de Promisses. Em uma casinha de fazenda, feita com pedras e madeiras, com apenas duas janelas e quatro cômodos, encontramos nosso casal abraçados na velha poltrona vermelha, que ficava perto da lareira. Juntos, eles tentavam espantar o frio daquela noite de início de inverno e acalentar a saudade que logo viria.

A saudade pode ser impiedosa, e mesmo antes que fosse despertada pela ausência, já perturbava o coração dos dois. Foi no tempo da Grande Guerra, aquele tempo de terror e assombro, dor e lamento.

De uma das janelas de madeira da pequena sala se via a estrada nas montanhas, iluminada pela lua cheia. Embora fizesse frio, a noite era clara e a estrada de barro parecia um gigante sorriso entre a vegetação. Era um lembrete constante de que alguém haveria de partir. Ana torcia para que a noite clara fosse um sinal de que uma boa viagem se faria: de ida e (principalmente) de  volta.

Ana agarrava-se ao marido, tentando guardar na sua memória todos os detalhes possíveis daquele homem que ela tanto amava. Observava seus olhos escuros e que a olhavam com tanto amor. A cabeça de cachos escuros que se inclinava ao escutá-la falar. As mãos grandes e cobertas de calos e cicatrizes que lhe davam o sustento, amparavam os anseios e a cobriam de carinho.  Ela apoiava  a cabeça em seus ombros procurando conforto, fechava os olhos e ali respirava fundo buscando ter para si um pouco daquele cheiro tão doce e amadeirado que encontrava no marido todas as manhãs.

Pedro acolhia a esposa, fazia o melhor que podia para ser forte pelos dois e consolá-la. Como alguém se prepara para deixar para trás, tão amável, frágil e dependente criatura?

Ele em breve partiria, não estaria mais com Ana para protegê-la, orientá-la e amá-la. Sentiria saudades de ouvi-la cantar pela casa, de sua risada engraçada, de escutar suas histórias durante o jantar, de rir quando ela alimentava os bichos ou cuidava do jardim de forma tão desastrada.

A guerra o levaria para longe. Havia chegado naquela manhã o decreto do Imperador de toda província de Promisses, convocando todos os homens, sem defeitos e aptos para o manejo da espada, com idade entre 18 e 45 anos, para o campo de batalha.

Pedro, mero carpinteiro, profissão que herdara de seu pai adotivo, nunca havia tocado em uma arma e não sabia lutar. Era acostumado a criar e construir, não a destruir. Ele sabia se defender, entendia de planos de guerra e estratégias, estudou sobre essas coisas na sua juventude, mas nunca havia colocado essas habilidades em prática e a teoria é bem diferente da prática, na maioria das vezes.

Ele sempre protegeu aqueles que estavam ao seu redor, mas quem o protegeria na guerra? Estaria desamparado e sozinho?

Ainda assim, nem pensou em questionar o decreto, ele mesmo assim ordenaria se estivesse no lugar do imperador. Sabia que a grande guerra deveria acabar e que para isso, era preciso lutar e que terríveis batalhas seriam travadas. Não temeu, conhecia suas obrigações, respeitava a missão que diante dele foi colocada. Se por alguns momentos se ressentia, era por pensar em Ana a quem tanto amava e precisava deixar sozinha.

Nosso casal compartilhou naquela noite os últimos afagos e juntos fizeram a última ceia. Seus três anos de casados pareciam tão pouco tempo perto da separação iminente.

Durante todo aquele dia, não se permitiram chorar. Quão terrível seria desperdiçar com lágrimas aqueles últimos momentos na companhia um do outro?
Tampouco riram risos forçados. Eles apenas ficaram juntos, tendo o máximo que podiam um do outro.

Ana só desejava agradar ao marido e em pensamento fazia preces para que nada de mal sucedesse a Pedro. Ele preocupado com Ana, dava instruções e conselhos à esposa, conselhos esses que ela deveria seguir em sua ausência e durante toda a vida. Sabia que seu afastamento exigiria muito da esposa, mas confiava que ela conseguiria. 

Logo pela manhã, antes do sol nascer por trás da montanha colorindo o Grande Vale da Esperança, Pedro partiria e ninguém saberia dizer quando voltaria ou se voltaria. A guerra já há tanto se arrastava  e provavelmente levaria muito mais tempo e muita  gente consumiria antes de findar.

Na porta de casa, feita de madeira de carvalho e que sempre rangia ao abrir, Pedro beijou a testa da esposa, olhou para ela com tanta ternura e lhe fez a promessa que lhe mudaria  a vida.

"Eu voltarei, Ana!" disse Pedro. "Não se preocupe, volto desta guerra e te levo comigo para um lugar onde haja paz."

Embora não soubesse escrever, Ana escreveu em sua alma tais palavras. Talhou cada letra na tábua de seu coração assustado e confuso. Ele voltaria. Por ela, voltaria.

Ele disse que voltaria (Conto Cristão)Onde histórias criam vida. Descubra agora