Um

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 A cena era a mesma de sempre, repetida em um filme velho borrado pelas espessas neblinas do tempo, um desalento de solidão de inverno. Os detalhes se perdiam na mente de João a cada nova encenação, de qualquer maneira era impossível se ater a eles. Já a sensação, tinha sempre a mesma força arrasadora. Uma torrente de pensamentos difusos voava ao seu redor feito um enxame de vespas a lhe ferroar a alma, até tirar-lhe as forças para prosseguir, a vontade para respirar. E ele nada podia fazer para afastá-los, sendo carregado por aquele turbilhão de angústia e sofrimento. Agonizava junto a milhares de gritos anônimos, todos carentes de justiça e humanidade, implorando por um perdão inexistente, por uma ajuda que jamais viria. De repente, os gritos se condensaram em uma única voz, a de sua tia. De joelhos, ela segurava a cabeça do pai de João, que jazia diante deles enquanto sua vida esvaía em vermelho, encharcando aquelas mãos trêmulas, impotentes. O criminoso que o baleara por alguns trocados, bem ali, diante de toda a família, fugia noite adentro, acolhido pelos recantos de impunidade da insensível metrópole. Sua irmã Inês, espantada feito bichinho indefeso, mancava às pressas em outra direção, desengonçada como sempre, desaparecendo para nunca mais ser vista por João. Tudo isso era observado pelo menino, e depois pelo homem, os dois seres um só, fundidos pela miséria comum de seu padecimento.

–A culpa é sua – a tia soluçava ao pai de João, já morto – Por que insistiu em ficar nessa terra horrível? Por quê?

O menino-homem apenas observava, resignado no seu silêncio paralítico. A tia então ergueu-lhe a face encharcada de lágrimas, e ainda aos prantos, disse:

–Nunca deveríamos ter ficado nesse inferno chamado Brasil... Devíamos ter voltado para Portugal depois de perdermos sua mãe... Depois de você...

João acordou em um sobressalto, o corpo trêmulo lavado em suor. No rádio despertador um empolgado locutor falava em francês, dando as boas-vindas ao novo dia como uma boia a salvar João do afogamento nos mares de seu pesadelo. Esfregou o rosto, lutando para espanar velhas ideias da cabeça.

–Menos passado, menos futuro, viva o presente – repetiu baixinho, inspirando e expirando, até a tremedeira passar. Nada de mais, apenas outra noite havia se passado, e apenas outro dia lhe aguardava. Conferiu as horas e pôs-se de pé. Mandou as cortinas se abrirem, mas sua voz saiu fraca, a boca seca pela umidade perdida para a pele arrepiada. As cortinas lhe fizeram pouco-caso, não se mexeram. Aborrecido, abriu os panos com as mãos, e observou com a vista cansada o lago e os alpes ao fundo. O céu estava cinzento, desbotado e sem vida, desmanchando-se numa garoa apropriada para um velório. Mais uma vez. O radialista seguia esbanjando alegria, e João perguntou-se de onde ele conseguia tirar tanta animação.

–Rádio, desligue. Cozinha, café preto, amargo e sem açúcar. Coçou a nuca, voltando a observar a paisagem monocromática. Era primavera, mas ultimamente Genebra parecia o único lugar do planeta não alcançado pelos dedos febris do calor. A cidade parecia hibernar, coberta por aquele manto acinzentado aparentemente capaz de protegê-la não só do clima fervente, mas também das turbulências do mundo lá fora. João conhecia bem o mundo, mais do que a si mesmo. Nessas horas era impossível não relembrar os caminhos tomados em sua vida. Olhou seu quarto e foi até a sala, espaçosa para os padrões locais, e pensou em tudo que construíra ali, nessa cidade previsível e enfadonha como um velho relógio de ponteiros. Não deixou-se abalar pela perda dos pais, dedicando-se ao máximo para ser o melhor na escola, o melhor no curso de idiomas, na faculdade, na pós-graduação. Seu esforço rendeu frutos, gerou um patrimônio e uma posição de respeito. Mas foi um caminho difícil e solitário. Sentia-se livre como uma folha seca perdida ao vento, sem raízes nem nada para deter os passos de seu próprio caminho. Por isso, bebeu seu café, colocou um moletom e saiu para correr.

Vermelho como BrasaWhere stories live. Discover now