Quatro

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Mais tarde, João já se encontrava em seu quarto no hotel, estirado na cama. Desistira de tentar ligar para Genebra, a internet mais uma vez não colaborava. Enquanto escovava seu terno, refletia sobre a mensagem enviada logo antes por Zachia: "Não há nenhuma pessoa com esse nome nos registros policiais". Isso era perturbador, pois trazia incerteza. Incerteza se Inês apenas escapou de ser pega, ou se teve sua existência apagada junto com seus registros. E a dúvida é mais dura do que a certeza. Porém, a verdade mesmo é que passou anos demais longe de sua irmã. Lembrou da conversa com seu tio e pensou como pode ter ficado tanto tempo sem vê-la, sem sequer interessar-se em ter notícias dela. Por que não se esforçou mais para tentar falar com ela, deixando-a abandonada, extraviada nessa terra infernal?

Mas não podia ajudá-la de forma alguma neste momento. Tinha de fazer seu trabalho, cumprir sua missão humanitária. O sucedido no vale do Anhangabaú, era preciso trazer os responsáveis à justiça! Pensou em tentar ligar de novo para o escritório, ao menos tentar deixar uma mensagem. Porém, não tinha nada nas mãos, nem uma filmagem ou relato para levar aos organismos internacionais. Por outro lado, talvez não precisasse. Aquilo foi um horror, ele viu com os próprios olhos. A essa altura, já devia ser notícia mundial. Ansioso pelas manchetes, esticou o braço para a pilha de impressos por ele requisitados na recepção do hotel. Puxou de início um jornal e uma revista. O jornal anunciava orgulhosamente o empréstimo de seus veículos para as forças de segurança usarem na detenção de "terroristas". Já a revista, exaltava na sua capa o novo governo nascido da "revolução". Puxou vários outros jornais e revistas ao mesmo tempo. Uns traziam manchetes de capa sobre a última festa na mansão do Sucesso, enquanto outros falavam sobre futebol ou sobre a nova calcinha comestível da estrela da novela das nove. João achou tudo aquilo estranho; pensou se os jornais não estavam atrasados e até cogitou a hipótese de estarem sendo censurados. Resolveu ver o que passava na internet, seria impossível não encontrar algum canal a repercutir o caso. Deitou-se na cama, puxou o controle remoto e ligou o vídeo.

O aparelho ligou no canal da Global Mídia, em meio a algum tipo sério e acalorado de debate. Seria uma discussão sobre a questão da moradia ou sobre a violência policial? Aumentando o volume, descobriu que o assunto era quem seria o novo líder do programa Sucesso. Trocou de canal e o videocomputador sintonizou na SRT, onde duas morenas de curvas exageradas dançavam para três homens amarrados em postes, como numa espécie exótica de ritual de acasalamento. Trocou o canal de novo, voltando para a Global Mídia. Era o intervalo comercial, e se anunciava algum programa humorístico onde uma loira estonteante ficava de quatro, relinchando feito uma égua, com um anão vestido de caubói montado às costas. Enjoado, trocou novamente de canal. No entanto, voltou ao mesmo programa do SRT. Seriam mesmo os dois únicos canais do país? Tentou trocar várias vezes, até surgir um culto evangélico, onde um pastor berrava histericamente algo sobre o sangue de Jesus não ser vermelho, pois vermelho era a cor do Diabo. Trocou, de novo foi parar no canal da Global, depois no da SRT. Insistiu mais. Por fim, apareceu outro canal. Era um combate a três no octógono, onde dois lutadores espancavam o terceiro no chão até este desmaiar, para a seguir começarem a trocar sopapos.

De repente, lembrou-se do que Alfredo havia dito sobre os gostos do povo. E lembrou-se também dos tais algoritmos da internet. Quanto mais algo é visto, mais ainda será exibido. Para testar sua hipótese, digitou manualmente o endereço do periódico opositor Prensa Latinoamericana, conseguindo acessá-lo normalmente. Então era isso. Na teoria, havia uma infinidade de canais e de conteúdos disponíveis para acesso. Mas, na prática, havia muito poucos, os mais acessados. E realmente, como os repórteres haviam lhe dito no avião, não havia censura no país. Para quê? Afinal, o povo realmente nada buscava além de futilidades... E assim esse governo criminoso se sustenta, João pensou, terceirizando a responsabilidade de agradar o povo às telas das tevês e telemóveis. Dessa maneira, o povo consome seu quinhão de ópio, a mídia ganha seu dinheiro, os pastores levam seu dízimo, o governo é deixado em paz e todos ficam contentes. Esse é o Brasil, e esses brasileiros, definitivamente têm o governo que merecem!

Vermelho como BrasaWhere stories live. Discover now