Três

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Acomodado no banco de trás do carro oficial, João observava a periferia da grande São Paulo correr diante de sua vista. Zachia, ao lado do motorista, só parava de falar no celular para, de tempos em tempos, observar seu visitante estrangeiro.

–Senhor Cunhal – Zachia disse, desligando o celular – gostaria de assistir tevê? Deve estar passando a reprise do último episódio do Sucesso. Ligue o vídeo para ele, motorista.

Uma tela de vídeo embutida no banco do motorista ligou, exibindo um grupo de pessoas sentadas ao redor das câmeras. A tela então se dividiu, mostrando em close os rostos de um homem e de uma mulher. Exibidos na tele junto a cada um dos rostos, gráficos em barra oscilavam para cima e para baixo.

–Murilo e Deise – uma voz de robô surgiu – preparados para a prova de cancelamento?

–Sim – os dois abriram sorrisos forçados.

–O público já sabe o que pensam um do outro, quais seus crushs e seus desafetos na casa, o que pensam do samba, dos viados e dos pets, qual sua posição preferida na cama e sua predisposição genética para doenças. Mas ainda está ansioso para saber se vocês são dignos do prêmio. Por isso, tenho uma pergunta direta: caso ganhem o programa, o que farão com o dinheiro?

–Ah, eu vou comprar uma casa pra minha mãe e doar o resto pra instituições de caridade – disse o homem.

–Muito bem – disse a voz robótica – Sua barra de popularidade subiu, mas só um pouco. De acordo com as pesquisas, o público não te achou muito convincente. Deise, sua vez, fale logo!

–Ai – a mulher hesitou – não sei mentir, vou gastar tudo comprando joias, vestidos e bolsas, além de ir todo dia pro salão. Não tenho muito dinheiro, sabe como é, quem nunca come se lambuza...

–Sua barra de popularidade está ficando menor do que sua conta bancária – o robô disse num sarcasmo metálico – pelas pesquisas, o público ficou incomodado com essa sua indireta a Murilo, e também já está farto dos seus reclames de falta de dinheiro.

–Mas gente, é sério! Eu sou sincera, fazer o quê? Quem não gostaria de torrar tanto dinheiro?

–Sua barra continua caindo. Segundo as pesquisas, o público não gostou de receber essa lição de moral.

–Pe-pera aí pessoal – a voz dela tremeu – não vou só torrar com besteiras, também vou pagar uma faculdade, acho.

–Sei não, o público não parece ter se convencido. Sua barra está prestes a zerar. Você tem apenas alguns segundos para dizer algo simpático.

–Não façam isso comigo – a mulher se pôs a gritar – sou pobre, não tenho emprego, só consigo ser influencer. Se me cancelarem vou desaparecer das telas, passar fome, não vou conseguir cuidar da minha vó com Alzheimer. Por favor, eu prometo sair pelada, eu dou pra quem me der um like...

–Cancelada! – uma voz grave ressoou enquanto uma corneta tocava, e no mesmo instante a imagem da mulher desapareceu – devia ter deixado o prêmio para a sua avó – a voz robótica completou – já que você era feia demais para quererem vê-la pelada.

João preferiu não pensar naquilo. Apenas desligou o monitor, concentrando-se na paisagem lá fora. Observou com o espanto do selvagem trazido à civilização o que a enorme cidade mais parecia ter a oferecer: sujeira, poluição e tráfego intenso de carros nas ruas, muito mais do que estava acostumado a ver em qualquer outra metrópole do planeta. Reparou na pobreza extrema dos casebres ao redor da via, característica de uma metrópole do mundo periférico, e decidiu abrir o vidro. Mas logo se arrependeu, pois o cheiro vindo lá de fora era uma mistura de esgoto fresco, chorume maturado e fuligem. Como podiam viver num ambiente desses? Duvidava serem capazes sem sem as placas de publicidade, enormes retratos de pessoas brancas felizes habitando lares confortáveis, fazendo festas, correndo em campos verdejantes ou brincando em praias paradisíacas, sempre cercadas de carrões elétricos automáticos, eletrodomésticos inteligentes, coloridas roupas da moda, perfumes, xampus, aparelhos multifuncionais, cartões de crédito e tantos outros artigos de consumo, objetos que reverenciavam com alegria, seus deuses da felicidade. Bálsamo a aliviar a escassez do mais básico sentida pelas gentes ao redor, capaz de mantê-las em pé pela simples força da fantasia, do estranho poder de sonhar com vidas que jamais teriam.

Vermelho como BrasaTempat cerita menjadi hidup. Temukan sekarang