Cinco

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 – Meu jovem, tu pode me baixar a janela?

– Perdão, senhora? – João foi despertado de seu cochilo no avião pela velha no assento ao lado.

– A janela. Agradeço muito se puder fechá-la durante o pouso. Me sinto mais segura quando não vejo nada lá fora. Tu sabe, o que os olhos não veem não infarta o coração. Obrigada, meu jovem. Sabe, tem feito uns dias bonitos lá na minha terra. As pessoas reclamam do Cataclismo, mas antes fazia um frio de encarangar no inverno. E agora faz um calorzinho gostoso, tu vais ver. Se bem que hoje vai estar um bafo. Claro, os verões se tornaram um inferno anda pior, Deus sabe, andar nas ruas virou coisa pra robô. Mas nós temos robôs, não é mesmo? A gente tem sempre de ver o lado bom das coisas. Veja eu, por exemplo, já podia ter batido as caçoletas, ido comer grama pela raiz, como tanta gente mais jovem tem feito. O mundo virou um monte de palitos de fósforo em um liquidificador dentro de um forno de micro-ondas, e ninguém se importa porque dá dinheiro vender liquidificadores e micro-ondas. Deus também sabe disso...

João tentou fazer um comentário, mas a velha continuou falando e ele calou-se. Decidiu prestar atenção naquele sotaque peculiar, e só conseguiu imaginar um carrinho de montanha-russa subindo e descendo sem parar. A velha falava, como diziam, num jeito cantado.

– Mas ainda estou por aqui, e ainda por cima com uma aposentadoria suficiente pra poder pegar um avião de vez em quando e visitar meu filho em São Paulo. Ele é meteorologista, sabe? Ele sempre me antecipa a previsão do tempo. E sempre me diz também que não quer saber de filhos, que só um louco iria querer ter filhos num mundo desses.

O aviso dos cintos de segurança acendeu, e todos foram informados do pouso. O avião foi descendo. A velha afivelou seu cinto, sem parar de falar:

– Isso me deixa triste, pois a única vantagem da velhice são os netinhos. Além, é claro, das viagens. E da preferência nas filas, se bem que hoje em dia as filas preferenciais têm mais gente do que as não preferenciais. Queria ser jovem pra poder ir mais rápido pegando uma fila não preferencial... Mas sou velha, e pra piorar, sem netos. Mas ainda convenço meu filho a adotar. É uma boa tática não é mesmo?

– Acho que...

– Mas do que eu estava falando mesmo? Ah sim, a previsão do tempo. Como disse, é pra fazer uns dias bonitos. Céu limpo e ensolarado, tri-legal mesmo. A não ser é claro que aqueles malditos gafanhotos estraguem tudo outra vez.

– Gafanhotos?

– Sim, esses pestinhas. Não te preocupa, eles não fazem mal às pessoas. É só não te apavorar e sair gritando no meio da nuvem de gafanhotos que nem fez aquela guria do Alegrete. A pobrezinha engoliu uns dois ou três e morreu engasgada. Isso é jeito de se morrer? Se fosse minha neta, eu ia até a Argentina dedetizar aqueles insetos asquerosos!

Quando o avião tocou o solo, ela calou-se no mesmo instante. Frearam com força, o vento rugiu lá fora. Depois tudo se acalmou, e o avião foi seguindo devagar pela pista.

– Enfim – a velha soltou o cinto e já foi se levantando – Foi um prazer conversar contigo, meu jovem. Agora preciso ir, pois o corredor não tem fila não preferencial. Ei, você aí do lado, pode me ajudar com minha mala? Obrigada, que Deus lhe pague com uma velhice cheia de netinhos, se o mundo não tiver se acabado até lá. Ah sim, mocinho – dirigiu-se novamente a João, que ainda esperava o aviso luminoso se apagar para soltar seu cinto – um conselho, e aproveite, pois conselhos são a última coisa ainda gratuita nesse país: se quer chegar na minha idade, cuida da tua retaguarda.

E piscando, assumiu seu lugar na fila. O avião parou, e após soltar seu cinto, João ouviu os alto-falantes anunciarem:

– Sejam bem-vindos a Porto Alegre.

No desembarque, enquanto esperava sua mala surgir nas esteiras, João pensou em Inês. Sim, ele fora um péssimo irmão. Mas ainda havia tempo de remediar. Tantos anos sem se ver, uma vida inteira! Sequer imaginava o que diria a ela, ou mesmo o que ela diria ao vê-lo. Valia a pena se preocupar com uma pessoa, a bem da verdade, estranha para ele? Ora, passara grande parte da sua vida nas Nações Unidas defendendo incontáveis pessoas estranhas, lutando por suas causas, se importando com o destino delas. Por que não haveria de se preocupar com sua própria irmã? Se ao menos tivesse mantido o contato com ela depois de se separarem, depois de... Enfim! Tinha de pegar suas coisas e sumir logo. Mas por que raios sua bagagem não aparecia?

Então a dita cuja surgiu, e João arrependeu-se de tê-la despachado. Ela vinha com um rasgo enorme no meio, por onde suas meias e cuecas se esparramavam por toda a esteira. João ficou ali, olhando, e depois de suspirar ajeitou o terno e a gravata, pegou a mala e foi recolhendo uma a uma suas roupas de baixo. Por fim, após fechar o rasgo numa embaladora de bagagens, dirigiu-se até a saída. Lá fora, o calor obrigou-o a esgarçar a gravata e retirar o paletó. Contemplou a sujeira, os táxis vermelhos, uns moleques descamisados e o agitado entra e sai de passageiros sem se impressionar. Puxou do bolso a foto, analisando as redondezas. O sol já se punha, por isso colocou a mala no guarda-volumes e deixou o aeroporto a pé. Como haviam lhe dito, do outro lado da avenida havia uma praça e, no meio da praça, a estátua do Laçador. Caminhou até diante dela e só então percebeu que, em vez de um laço, a estátua tinha à mão um enorme pênis de borracha.

De repente, um vento acertou-lhe as costas como uma facada. Era um sopro doído de gelado, inacreditável para um dia tão quente, e João rapidamente vestiu o paletó. O vento foi ficando mais frio e intenso, trazendo folhas secas de um outono fora de época. Tremendo, João notou grossas nuvens se formando nos céus, e perguntou-se quando os meteorologistas acertariam uma previsão sequer. Então, como num passe de mágica, o vento cessou e o calor voltou com tudo. Assim nunca acertariam mesmo, pensou enquanto retirava o paletó novamente. Quando retirava a vestimenta notou um gafanhoto pousado no seu ombro. Era cinza, gigante, e se punha a observá-lo com seus enormes e curiosos olhos, decerto se perguntando o que João fazia por ali. Ele também queria saber. Prestou atenção na foto, do mesmo ponto de onde ela foi batida, e notou algo. Era na mão esquerda da estátua, a do braço livre onde a jovem subira, onde ela se apoiara com sua sacola rosa metálico berrante enquanto desafiava a tirarem-na de lá. Foi até perto da base, comparando sua visão com a do retrato. E de fato, ali estava, enroscada na ponta do dedo da estátua, uma manchinha da mesma cor da sacola. João subiu na base, trepou na estátua e alcançou a mão, retirando dela o trapo colorido, um pedaço de pano rasgado. Desceu da estátua na mesma velocidade da subida, olhando para os lados feito criança que acabara de roubar goiabas do pé do vizinho. Depois de gastar um tempo espanando e ajeitando seu terno, analisou o pano. Para sua surpresa, encontrou enroscado nele um papel, um pedaço de recibo, com um endereço impresso: Avenida Borges de Medeiros nº 731.

Guardou o papel, e em vez de pensar naquilo como um incrível golpe de sorte, pensou como apenas mais uma oportunidade, outro chamado à responsabilidade. E espanando mais um pouco seu terno, deu as costas à estátua e foi atrás de sua bagagem.

Vermelho como BrasaWhere stories live. Discover now