Seis

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Chovia, deixando a noite ainda mais escura e insalubre. No banco traseiro do táxi João tossia, se perguntando quantas vezes já tirara e botara o paletó desde sua chegada a Porto Alegre. Desistiu de se adaptar àquele tempo esquizofrênico, aceitando suar frio. Pensou em perguntar ao taxista como podiam aguentar um clima desses. Mas a cara deste, com sua barba volumosa e a expressão de muito poucos amigos, um legítimo bárbaro saqueador de Roma, desistiu. A chuva apertou. Pararam no semáforo, e uma criança esquelética bateu no vidro, oferecendo a João pacotes de doces inchados de tão encharcados. Antes mesmo do rapazinho suplicar com seus olhos fundos, João tentou abrir o vidro para lhe dar uma esmola, mas seus comandos estavam travados. Lutou em vão com os botões. E quando olhou de novo para o rapaz, este mostrou-lhe a língua e sumiu. O sinal abriu, o carro prosseguiu. Estavam subindo quando o veículo deteve-se no semáforo seguinte. Dessa vez não havia uma viva alma ao redor. Somente um enorme cartaz de publicidade, exibindo carnes suculentas assando no espeto, uma propaganda de churrascaria. Cem por cento proteína animal, o cartaz anunciava orgulhosamente. Então o sinal abriu, e enquanto o carro arrancava, João notou em letras pequenas, quase escondido embaixo do cartaz, a explicação feito com carne de gafanhoto.

Finalmente, depois de passar por um viaduto, o táxi encostou. A chuva parara, e depois de pagar João subiu uma escadaria até parar diante de um prédio coberto de grafites, uma explosão de cores e de criatividade saltando aos olhos naquela vizinhança de construções antigas e desgastadas. Notou uma enorme bandeira vermelha e preta, logo acima da entrada, e entrou, afinal, não havia porta mesmo. Lá dentro, o escuro só era maculado pela pálida iluminação de emergência das escadarias. João pensou que ainda havia tempo de dar no pé, mas, mesmo assim, subiu as escadas. Chegou ao primeiro andar, onde o cheiro era de uma mistura de óleo essencial de baunilha com cocô de gato. De algum lugar vinha um som alucinante de guitarras, arranhando e ondulando entre graves e agudos para produzir um efeito quase psicodélico. Alternativo demais para o gosto de João. Então a luz o cegou quando uma porta se abriu. Uma voz de homem resmungou, e por fim, perguntou:

– Pensa que isso aqui é o quê pra ir entrando desse jeito?

Para o espanto de João o homem estava armado. Ele segurava um revólver com a displicência de quem parecia não notar o que trazia à própria mão. Mas foi o suficiente para deixar João mais imóvel do que as paredes ao redor.

– Como é? Não vai falar nada?

João não conseguiu se mexer. Foi ficando branco como papel, a respiração falhando, os olhos grudados na arma. Antes de ver João desmaiando na sua frente, o sujeito preferiu guardar a arma na cintura.

– Pe-perdoe-me – João gaguejou quando conseguiu desprender o ar – Estou à procura de Inês Cunhal.

– Inês – uma voz feminina exclamou lá dentro, de onde a luz vinha. O homem fechou a porta, e as luzes do corredor se acenderam. Era um magricelo de meia idade, barba por fazer, careca sulcada como uma avenida e os braços nus tatuados, tão cheios de desenhos coloridos quanto o prédio onde habitava.

– Quem é você?

– Meu nome é João – disse com cautela, sem tirar os olhos da arma – sou irmão de Inês.

– Irmão? – o sujeito espantou-se – Ela nunca nos contou de um irmão. Muito menos de um português.

– Conheces Inês? Onde ela está? Ela está bem?

– Como posso saber se tu é mesmo irmão dela?

– Aqui, veja meus documentos... Temos o mesmo sobrenome... Não há muitos Cunhais por aí.

– Nações Unidas? Um irmão de Inês surge do nada, apresentando carteira da ONU. E sequer é brasileiro. Por que não estou acreditando nem um pouco nessa história?

– Veja bem...

– Sabe ao menos o aniversário dela?

João recuou, sentindo-se chicoteado. O aniversário de Inês, quando era mesmo? Atravessara o oceano, desobedecera ordens, abandonara o trabalho, tudo por uma pessoa que não sabia sequer o aniversário? Lembrava sim, tinha de se concentrar! Vinte e um, não, vinte e sete de...

– Vinte e sete de maio.

– Muito bem. Mas demorou pra responder. Ainda não estou convencido de que não és outro maldito pé-de-porco.

– Outro o qu-quê? – João gaguejou, irritando-se com o que lhe pareceu mais um gracejo de brasileiros, como de costume, fora de hora.

– Você é engraçado – o sujeito sorriu pelo canto da boca – nenhum brigadiano consegue ser engraçado. São todos sérios como o castigo, pesados como seus coturnos, duros como as barras das celas de prisão. Quem é servo do Estado não consegue ter personalidade própria. Diferente de você.

– Obrigado – João respondeu, mesmo sentindo vontade de xingá-lo.

– Vamos fazer o seguinte... Apareça aqui na próxima noite, nesse mesmo horário. Quem sabe, te falo dela.

E abriu sua porta, já indo embora.

– Espere. Diga-me ao menos se ela está viva.

– Morta não está – esbravejou – mas como é possível viver em constante fuga, com a polícia querendo enfiá-lo numa gaiola feito passarinho? São como crianças mimadas querendo pegar as pessoas como se elas fossem objetos a serem possuídos. De onde vem essa mania das pessoas de serem donas das coisas?

Por fim fechou a porta, sem dizer nem uma palavra de despedida. Morta não está, disse ele, mais informações somente amanhã. Sabia que não ia dar em nada, fui um parvo em vir até Porto Alegre. Nada disso, estou a obter avanços, pensou João enquanto descia as escadas. Lá fora, pingos esporádicos ameaçavam a volta da chuva, e a temperatura encontrava-se tão indefinida que João não saberia dizer se sentia frio ou calor. Maldito Cataclismo, só faltava abrir o sol e nevar. Atravessou a rua, precisava encontrar um táxi para voltar ao hotel. Olhou para os dois lados, mas não para trás, e assim, percebeu tarde demais os passos se aproximarem.

– Aí, panaca – disse-lhe uma voz debochada. Antes de conseguir se virar, João sentiu o corpo convulsionar. E desabou no meio da rua.

Vermelho como BrasaWhere stories live. Discover now