Prisioneira

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Eu tinha nove anos de idade quando minha mãe foi assassinada. Ela havia saído em mais um de seus passeios pelo Reino porque era o que ela gostava de fazer quando estava se sentindo triste, irritada ou muito feliz — eu só não sabia qual dessas emoções a estava corroendo no fatídico dia

E mesmo que guardas a seguissem por ordens de meu pai para mantê-la à salvo, naquela noite, justo naquela noite ela decidiu que fugiria. Ela saiu sem avisar ninguém, sem deixar um recado ou bilhete, apenas sumiu e quando meu pai notou já era tarde.

Recebemos a notícia pela manhã, fora um início de noite e uma madrugada muito longa para nós enquanto esperávamos por uma resposta, tropas estavam vasculhando a cidade a procura da rainha, até chegarem bem próximo de uma taverna cheia de bêbados e que ficava muito perto do mar; os piratas haviam á assassinado, embora não soubéssemos como era possível, tudo indicava que era eles, pela marca que deixaram em sua pele, como um aviso, provavelmente.

Mas o luto era uma merda

Uma coisa era certa, quando alguém que você ama muito morre, é como se sua vida se dividisse em duas partes, uma antes e uma bem diferente depois do que aconteceu, bom, pelo menos é assim que eu imagino. Você terá lembranças de um tempo em que aquela pessoa estava com você, vocês estavam sorrindo na mesa enquanto jantavam, e a outra parte é que você vai olhar para a mesa e aquela pessoa não vai estar lá, a fome passa, e você sente um nó se formar na sua garganta, você sente falta, porque a morte muda tudo.

E isso foi o que aconteceu comigo, meu pai teve outras maneiras de lidar com a morte de minha mãe, ficou mais ranzinza, rigoroso e cheio de regras. A principal era: nada de sair do castelo. Nunca. E principalmente, nada de fugas.

Minhas irmãs obedeciam essa regra veementemente, a morte de minha mãe provavelmente chocou muito mais elas do que a mim — eu tinha apenas nove anos, Pandora tinha quatorze e Cerci dezessete, elas entendiam muito mais do que eu. — e mesmo que eu, ainda que gostasse das histórias, tivesse destruído todo o meu quarto, e jogado fora os livros sobre os piratas, aquela era minha forma de lidar com o luto; já Cerci e Pandora lidaram da forma delas, e seguir aquela regra era, para elas, como se estivessem obedecendo à uma ordem dada por mamãe.

Então era normal que meu pai tivesse ficado furioso comigo quando entrei no salão do baile com dois guardas à minhas costas, enquanto ele analisava minhas roupas encharcadas.

No mesmo momento o baile acabou, risadas e cochichos cessaram quando o grito estrondoso de meu pai ecoou por todo o salão, minhas irmãs se encolhiam a medida que papai se aproximava de mim, Pandora, com o olhar, me repreendia e ao mesmo tempo quase pude escutar ela dizer "Eu avisei". E de repente senti minha bochecha arder e percebi que também havia virado o rosto, instintivamente minha mão foi direto até minha bochecha a acariciando ali e olhei com raiva para meu pai, o Rei, que havia acabado de me bater.

— Eu já não avisei que não quero nenhuma de minhas filhas fora do castelo? Safira, o que estava fazendo lá fora? — ele gritava comigo, e nem sequer mandou os convidados irem embora.

— O senhor me bateu? — meu pai pareceu recuar um pouco, ele estava tão nervoso, mal havia percebido o que fez, franzi as sobrancelhas — O senhor me bateu!

Ele ficou calado, parado, todos ao nosso redor pareciam cochichar baixinho uns para os outros. Meu pai, embora tentasse não demonstrar, não estava mais estável desde que mamãe morreu, a sanidade dele havia ido embora muito antes disso acontecer também, mas ele passava a maior parte do tempo trancado ou sentado no trono. Ouvi quando alguém sussurrou alto demais, sem perceber, que o Rei já estava velho e descontrolado.

— Papai, acalme-se — Cerci estava com a mão no ombro dele — Por favor, não faça nada que vá se arrepender depois, mande-os irem embora, tente se acalmar e depois converse com Safira, agora, o melhor a se fazer é cancelar o baile.

Ele olhou para mim com um ódio avassalador, era quase palpável, virou-se para Cerci e então assentiu uma vez.

— Suba para seu aposento, amanhã nós conversamos — disse ele, ainda que de costas para mim, era uma ordem direcionada à mim.

— Claro, Vossa Majestade — inútil, mas fiz uma reverência breve e segui a caminho do meu quarto.

Nesses momentos, eram nesses momentos que eu mais sentia falta de minha mãe, nada disso teria acontecido se ela estivesse aqui. Ela não permitiria qualquer tipo de violência contra qualquer uma de suas filhas. Eu sentia falta dela.

Não tive nem dois minutos de privacidade, madame Potts entrou em meu quarto balançando a cabeça, repreendendo-me.

— Ora, criança. Sabe que o Rei reprova essa sua atitude de fugir, e sabe também que não é pela fuga, é por medo de perder você também.

— Eu sei — foi só o que eu consegui dizer, mesmo que ele estivesse fazendo todas essas coisas pelo motivo certo, ele acabava errando.

— Vá se banhar, e quando voltar a cama aquecida estará esperando por você.

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Já estava quase dormindo quando ouvi leve batidas na janela, levantei quase em um pulo, e corri para abri-la.

Thomas entrou e eu a fechei novamente, estava se tornando uma noite fria.

— Fiquei sabendo sobre o que aconteceu. — ele andou até mim em passos firmes, e me puxou para um abraço apertado — Como você está, minha princesa?

Eu não queria falar sobre aquilo, havia sido muita humilhação, mas eu sabia que Thomas iria insistir, e eu prometi sempre ser sincera com ele.

— Estou devastada, me sinto sufocada, sinto que não consigo respirar a cada minuto que se arrasta e eu continuo presa aqui dentro, e pior, não conheço mais meu pai. Todos me mandam calar a boca, ao que parece sou a tagarela, inútil, boba, burra, etc., etc. Me sinto sozinha.

— Imagino que deva ser difícil, amor, mas você precisa aguentar só mais um pouco. Logo nós estaremos casados e você certamente não se sentirá assim nunca mais. Seremos felizes para sempre.

— É tudo o que eu mais quero — levantei um pouco o rosto e grudei meus lábios nos dele. Eu só tinha que aguentar um pouco mais, logo tudo seria mais fácil, sem todo esse sofrimento.

— Você precisa dormir.

— Não vá, por favor, fique.

Thomas não foi, passou a noite comigo, eu deitada nos braços dele, e ele mexendo em meus cabelos até eu dormir. Quando acordei pela manhã ele havia ido embora, não era novidade, ele sempre ia, mas por algum motivo hoje eu desejei que ele ainda estivesse comigo.

Desci para o brunch, esperei que todos comessem para só depois eu ir. Após o café, passei pelo jardim, fui até o estábulo, passei em frente a biblioteca que era proibida para nós — as princesas —, porque não era 𝘯𝘦𝘤𝘦𝘴𝘴𝘢́𝘳𝘪𝘰 aprender a ler, só tínhamos que aprender boas maneiras e nos portar bem.

E quando chegou a tarde, corri para a floresta onde sempre me encontrava com Thomas. Sentei-me na grama, e esperei por ele, que não veio.

Mas a sua ausência não me impediu de aproveitar, porque quando eu estava fora, tentava tomar de volta todo tempo que me era roubado quando estava no castelo.

Tive de voltar mais cedo para o castelo, aquela confusão ainda não tinha tido um fim e eu sabia disso, papai ainda iria querer falar comigo, e para variar, eu sabia que viria mais sermões e sabe lá Deus o que mais.

Sabia que estaria certa, não esperava que fosse acontecer logo, mas aconteceu.

Assim que cheguei no castelo pude ver que todas as janelas agora estavam fechadas, trancadas, tapadas por uma madeira que eu duvidava muito que fosse conseguir empurrar se quisesse. Mais uma ordem do Rei, agora éramos mesmo prisioneiras.

— Seus dias de fuga acabam hoje, mocinha — disse ele, apontando o dedo em riste para mim, vindo como um vilão que saiu direto de uma história de terror.

Mas não acabavam aqui, papai, eu não permitiria isso. Jamais.

LUA NEGRA Where stories live. Discover now