02 - Uma lápide e um reencontro

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Ajeitando seu chapéu mais uma vez após outras tantas, encarou seu reflexo no espelho quebrado atrás da porta do quarto e engoliu em seco todo o amargor de se observar naquele círculo espelhado.

— O tempo é muito mais cruel do que fui nessa vida.

Segurou o velho papel já bem sujo devido a todas as vezes em que foi manuseado e lido. Pegou a sua bengala e seu lenço, trancou a porta e vagarosamente seguiu pela calçada na avenida movimentada ouvindo o quebrar das folhas ao chão abaixo de seus pés.

— Por que ninguém mais varre a calçada hoje em dia? Quanta sujeira há aqui.

Parou um pouco e começou analisar as folhas das árvores que balançavam acima de sua cabeça e o sol acariciou sua pele deliciosamente e lágrimas empoçaram em seus olhos, mas, foram mantidas presas ali.

— Que dia bonito. Faz tanto tempo que não vejo nada além das paredes e móveis de casa que quase havia me esquecido de como era bom estar do lado de fora.

Respirou profundamente e ajeitando o chapéu, continuou sua caminhada até estar de frente a lápide que abriga os restos mortais de quem um dia foram seus pais e abrigo.

— Oi mamãe, oi papai, quanto tempo, não? Me desculpem pela demora em vir aqui vê-los. Eu tenho tanto para pensar ultimamente, porém, creio firmemente que em breve estarei junto a vocês, desejo isso a todo instante há mais de sessenta anos.

Se acomodou em cima da lápide e retirou os resquícios de pétalas secas das últimas flores que ali repousaram.

— Me perdoem, não trouxe flores hoje, mas, logo trarei.

Começou a chorar e seu lenço fora seu único e fiel companheiro.

— Hoje é meu aniversário. Eu queria comemorar indo encontrá-los, me perdoem por isso também.

Encostou a bengala na lápide, levou a mão ao peito e se deixou lamentar até não aguentar mais.

— Papai, fui tão horrível em toda a minha vida, me desculpe. Mamãe, nunca fiz nada de bom nessa vida, me perdoe. Vocês foram os melhores pais para alguém igual a mim, vocês me amaram com todas as minhas falhas e sinto tanto a falta de vocês. Talvez se vocês tivessem tido mais tempo comigo, quem sabe, poderia ter me ajudado a ser melhor, mas, nada disso é culpa de vocês, não se preocupem. Existe uma pessoa que entrou na minha vida há oito meses e meio, uma garotinha insolente, enxerida, atrevida, ousada, audaciosa e muito especial. Eu acho que o que me ajuda a levantar toda manhã é a ideia de vê-la transitando pela casa com um sorriso de orelha a orelha ou então, implicando comigo de alguma forma. Eu não sei quando ou como ela chegou ao meu coração, mas, ela está aqui há mais tempo do que posso me lembrar. E quero partir logo, não é justo alguém como eu, ser tão bem tratada por alguém igual a ela. Ela merece viver e ir em lugares melhores e com pessoas melhores e que a amem mais do que poderia amá-la um dia se houvesse mais tempo para mim nesse mundo.

E novamente as lágrimas vieram banhar seu rosto marcado.

— Gostaria de tê-la conhecido antes. Mas, ainda bem que não a conheci, senão seria mais difícil ainda de ir embora desse mundo.

Seu monólogo foi interrompido por passos que chegaram logo ao seu ouvido e desviaram a sua atenção para um senhor parado com um enorme buquê nas mãos tão enrugadas quanto as suas.

— Amélia, você por aqui?

— Valentino?

— Sim, minha irmã. — a analisa estupefato. — Há quanto tempo?

— O que faz aqui?

— Ora essa, vim deixar flores para nossos pais. Que bom te ver...

— Pena que não posso dizer o mesmo. Estou indo embora agora, adeus.

Amor e AmarguraWhere stories live. Discover now