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São Paulo, 1995.

Quando eu era adolescente, aos 12 ou 13 anos, ouvi meu pai falar que seu avô tinha morrido de "overdose". Lembrei do meu avô, filho do meu bisavô, que na época tinha 59 anos e comecei a fazer as contas sem o menor embasamento de tempo, só sabia que ele nasceu em 1919, o pai dele tinha morrido em 1930, provavelmente, e que 1930 era uma época muito distante, "cheia de Carmens Mirandas, Getúlios Vargas e Hitlers, todos dançando 'Tico Tico no fubá'".

Aos 15 anos, em 1980, durante uma aula sobre "drogas" na escola, para não dormir, comentei – para chocar a professora – que "o meu bisavô morreu de overdose". A professora de Ciências "pra frentex" meneou a cabeça e sorriu amarelo.

Eu ainda não tinha ouvido falar de Sid Vicious e Sex Pistols, mas todo mundo sabia que o Elvis Presley tinha morrido de overdose em 1977, logo, 35 cabeças viraram em minha direção, bocas abertas e olhos arregalados. Suspirei e continuei entediada com aquela aula.

Maldito tédio e maldita informação inútil! Eu não me transformei na "fodona" da classe, mas sim, na "estranhona mentirosa que disse que o bisavô morreu de overdose".

Colégio classe média de São Paulo, fim interminável da Ditadura Militar; o General João Baptista Figueiredo era o novo manda-chuva da baderna. Pouco tempo antes, Henfil voltou do exílio ao Brasil como na música de Aldir Blanc para fazer as pessoas rirem e pensarem com sua ironia na TV Mulher da Globo. Eu só queria dormir, dormir e dormir mais um pouco, entediada com minha vida, com a escola, com a família, com tudo.

Ao me livrar da escola, foi com grande alegria que me vi sem ter que aguentar a falsa moralidade dos coleguinhas de escola, com quem definitivamente eu não me dava. Tirei um ano para mim mesma, fui procurar emprego e em 1983, estava trabalhando em uma loja de discos no shopping Ibirapuera.

12 anos se passaram, e eu me tornei jornalista, escrevendo para dois jornais e uma redação de televisão sobre música. Não era o emprego dos meus sonhos mas rendia alguma diversão como entrevistar os Rolling Stones, Guns 'n' Roses e Aerosmith. Até falei algumas vezes com o Nick Cave no período em que ele morou no Brasil.

Eu morava no Largo do Arouche, para horror dos meus pais e o meu próprio, porém, era o que tinha e que dava para pagar sem sair de São Paulo e com a vantagem de estar perto de tudo.

Em dezembro fui passar o final de semana de aniversário do meu pai, na chácara dos meus pais em Cabreúva. Até que foi uma boa alternativa, assim eu deixaria o meu companheiro de apartamento sozinho com o namorado por dois dias inteiros, sem que eles se constrangessem com a minha presença cada vez que precisava sair do meu quarto.

Família toda reunida, churrasco, pagode, e o meu pai se sentou ao meu lado com uma pasta azul escuro de papelão:

– Liliana, eu estou juntando os documentos da família para pedir a Cidadania italiana. Alguma coisa de bom, já que eles não deixaram herança pra gente, tem que sair, né? Dei um golpe de sorte, consegui todas as certidões em pouquinho tempo, ó!

Ele abriu a pasta e me mostrou o seu "tesouro": certidões em inteiro teor, contando a história do nascimento, casamento e óbito de seus avós e seus pais, além de sua própria certidão de nascimento, de casamento e até a minha e de meus irmãos.

– Legal! – disse ao ver de relance a certidão de óbito do meu bisavô. – Posso ver?

A história da "overdose" do bisavô voltou imediatamente e eu esperava que ele tivesse morrido no apartamento de alguma amante, com a agulha espetada no braço. Essa era a história que, misturando com a de Sid Vicious, eu tinha criado para mim. Li o relato prestado por um tal de Pino Gigliotti:

"Aos vinte e nove dias do mês de janeiro de mil novecentos e vinte e seis, nesta cidade de Flores, em cartório, compareceu como declarante, o senhor Pino Gigliotti, maior, casado, italiano, commerciante, residente nesta cidade, e por elle foi dito que no dia vinte e nove de janeiro de mil novecentos e vinte e seis, às oito horas, nesta cidade de Flores, á rua Prudente de Moraes, na Pharmacia Rossi, falleceu "EDOARDO PERCIPALLE, com vinte e sete annos, presumíveis, casado, pharmacêutico de nacionalidade, filiação e naturalidade não informada pelo declarante e médico atestante, domiciliado em São Paulo, onde deixa viúva com três filhos. Morreu de morte, digo, filhos, victimado por morte súbita, conforme atestado médico firmado pelo Doutor Irmo Falabella, que fica archivado neste cartório e o cadáver vae ser sepultado no cemitério desta cidade. O informante não informa, também se o fallecido deixa ou não bens a inventariar. Em firmeza do que, lavrei êste termo que, lido e por conforme, vae devidamente assignado. (...)"

– Pai, você viu isso? – Mostrei a certidão de óbito do Edoardo.

– Ah, é, né? Dá pra entender o que está escrito? Que confusão esse texto... – Meu pai colocou os óculos de leitura e segurou a certidão – Por isso que eu tô mostrando pra você os documentos: vê se você entende o que está escrito nisso, porque eu não entendi.

– Entendi que um cara foi lavrar em cartório o falecimento do bisavô Edoardo como "mal súbito" e o lavramento se deu no mesmo dia da morte, que ocorreu às oito horas da manhã, baseando-se no atestado médico visado pelo Delegado de Polícia de Flores. Em resumo: o vô tinha razão, o pai dele não morreu de overdose, mas de mal súbito.

– Se meu pai estivesse aqui, ele me daria bronca...

Em pensamento, concordei, afinal de contas, um assunto polêmico na família era a morte do bisavô Edoardo. Eram raras as vezes em que tocava no assunto, mas era bem marcante e de posse daquela certidão, a polêmica estava sepultada. Pelo menos, para meu pai.

Os dados daquela certidão de óbito não saíam da minha cabeça, não apenas pela confusão do texto, mas alguns dados que não batiam:

· O declarante sabia o nome inteiro do meu bisavô, sabia que ele tinha mulher, três filhos e que ele morava na capital, porém, não sabia dizer a idade do meu bisavô;

· Tudo bem pedir a emissão da certidão de óbito no mesmo dia, porém, ao que constava, entre a morte do meu bisavô e a notificação à família, demorou alguns dias. E pelo que dava a entender, o sepultamento se deu no dia seguinte e sem a presença de familiares;

· Sem citar o nome dos pais do falecido...

"Em que ano foi criado o RG no Brasil?", me questionei pensando, "que eu saiba, a tal carteira modelo 19 para estrangeiros foi criada em 1939... Teria sido no mesmo ano?"

No mesmo fim de semana, copiei, palavra por palavra, a certidão de óbito, com todos os PH e letras dobradas. Minha esperança era ter uma folga do trabalho para ir à Flores e investigar a história.

A folga nunca veio, mas meus pais foram à Itália para reconhecer a cidadania, dois anos depois. 

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