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São Paulo, 2003.

Decidi vender o Celta para cortar qualquer ligação com a minha aventura que quase acabou mal. Porém, para vender em uma loja de carros usados, era preciso levá-lo ao lava-rápido para lavar o fundo e revisar o cárter, que poderia estar amassado pelas ruas de terra do bairro em Cabreúva.

O carro na lavagem e eu, na loja de conveniência, comendo uma banana split, morrendo de saudades das brincadeiras da Vivien com a colher e o sorvete. Geralmente, ela acabava suja dos pés à cabeça e eu brincava, dizendo que a levaria ao lava-rápido para lavarem-na com a mangueira de alta pressão.

— Assim que se lava os porquinhos!

— Os tlêis? - Ela me perguntava surpresa, com sua linguinha presa.

— Todos os três e o lobo assopra com seu super sopro supersônico para eles se secarem.

Em dois dias, eu mataria saudades dos meus olhinhos verdes favoritos, que passaria a morar com o pai e a madrasta enquanto as coisas não sossegassem. Eu mesma, estava dormindo no sofá do apartamento de um ex-colega na Vila Mariana.

Olhei o placar de senhas e a lavagem estava pronta. Fui ao caixa, paguei pelo serviço e fui buscar o possante.

— Olha, tudo o que encontrei que não se parece com lixo, coloquei no banco do carona. – O funcionário explicou. Agradeci, peguei a chave e o cheiro no interior do carro era outro, cheirinho de limpeza!

Olhei a pilha de recolhidos no fundo do carro e reconheci entre os brinquedos da Vivien e Cds de música riscados, um objeto retangular embrulhado com papel pardo. Era do tamanho de uma fita VHS. Com certeza, não era meu.

Soltei a fita adesiva com cuidado e descobri que realmente se tratava de uma fita. Só precisava encontrar um videocassete para reproduzi-la.

A curiosidade de Jornalista me impediu de prosseguir o caminho para o apartamento dos meus amigos e decidi ir à avenida Moema, onde um pessoal que eu conhecia tinha uma produtora e talvez, eles ainda tivessem um videocassete.

Melissa, uma das donas da produtora, me acompanhou à suíte de edição e numa gambiarra louca, conectou o videocassete ao desktop e apertando o play, o vídeo começava com o garoto João Pedro:

-- Oi, tudo bom? Desculpa aí o nervoso do meu pai. É que o lance aí da morte na farmácia é um tabu em família faz mó cota. Cada vez que alguém fala do cara que morreu na farmácia Rossi, o bicho fica sinistro aqui em casa e na casa de mais uma pá de gente.

O vídeo continuava com o relato da bisavó do garoto e como se fosse uma câmera escondida, a conversa do deputado federal, os pais do João Pedro e um terceiro homem.

Ouvi-los falando deixou-me realmente mal. Eu nunca conheci o meu bisavô, claro, e nem o meu avô o conheceu direito. O que me disparou tristeza, raiva, rancor e pena foi pensar na minha bisavó, cuja vida inteira foi um martírio; pensei na Vivien, se eu ou Gérson evaporássemos da Terra.

Eu chorava de soluçar e Melissa deu um pause para buscar um copo d' água para mim.

— Ai, Li! Que tristeza...! Eu me lembro de uma vez você me contar sobre os perrengues que a sua bisa passou e que ela tinha mágoa do marido que morreu por causa do vício em morfina...

— É, essa história aí que o menino contou. Minha bisavó morreu acreditando que o marido dela tinha morrido de overdose e olha aí, não morreu!

— Triste, isso... O que você pretende fazer?

— Não sei... - recostei no encosto da cadeira giratória - Tem como fazer uma cópia em DVD para mim? Preciso pensar no assunto.

— Pode deixar, eu copio o vídeo para você. E, Li... Eu estou precisando de uma Jornalista baixinha, meio dentuça, mãe solo quebrada financeiramente e que só se mete em confusão, mas fala cinco idiomas. Se você conhecer alguém com esse perfil, me dá um toque.

Ri enxugando uma lágrima.

— Poxa, eu conheço alguém com esse perfil, sim. É para trabalhar na produtora, redigindo matérias?

— Mais ou menos... Pode e deve redigir matérias, mas é também para produzir vídeos de turismo no Brasil e na América Latina. Eu tenho uma demanda forte por esses vídeos e você fotografa bem, é inteligente, saca as melhores paradas das localidades e vai me ajudar a produzir um material diferenciado.

— Tô dentro.

💮

Dois dias depois, minha Vivien correu para meus braços no aeroporto de Cumbica.

— Ó xó babãe! - Vivien me mostrou o dentinho faltante.

Com o filho mais velho da Adriana nos braços e correndo atrás da Vivien, Gérson resfolegou ao nos ver abraçadas.

— Tá de janelinha aberta! Que linda!

— Gaiu drendo do abião! - Orgulhosa, ela falava em um sorriso largo — Eu dum zorei...

— Oi, Li.

— Oi, Gé. Fizeram boa viagem?

— Tirando o dentinho que caiu e fez sangueira, não tivemos nenhuma turbulência a mais. E você?

— Vendi o Celta, vou comprar um Gol bolinha e consegui um emprego!

Vivien comemorou pulando nos meus braços e Gérson mostrou a palma da mão para um hi-5.

— Finalmente, hein?

— Me dá o Enzo aqui e vai ajudar a sua mulher, japa! Puta mancada deixar a Adriana carregar a Yuna e empurrar o carrinho de malas sozinha...

Preferi não mostrar aoGérson o vídeo e, assim como tudo o mais que envolvia o caso do meu bisavô,decidi esquecer enquanto a Vivien não fosse maior de idade. Mais 13 anos.

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