3

1 0 0
                                    


Cabreúva, 2003.

Meus pais moravam na Itália, em um vilarejo ou borgo, chamado Muro Lucano, onde meu tataravô nasceu. Eles gostavam de morar lá e eu e minha filha de cinco anos costumávamos visitá-los para passarmos o natal com eles e meus outros três irmãos, cada um estava para um lado, e a que morava mais perto morava em Santos, a Raquel.

Eu e minha filha tínhamos herdado a chácara em Cabreúva, assim minha filha poderia estudar e eu trabalhava de casa... Era "empreendedora", um nominho bonito para quem faz bicos enquanto espera por uma chance de emprego que nunca aparece.

O pai da minha filha morava em São Paulo com a nova família dele e volta e meia a Vivien ficava com o pai e a madrasta. A gravidez foi um escorregão, mas deu-me o melhor título – o de mãe – e gerou a pessoa mais importante da minha vida.

Em julho de 2003, meio que nadando em dinheiro, o pai dela me pediu permissão para levá-la à Orlando com sua família. A princípio, eu não curti a história, visto que ela ficaria muito longe de mim por quase um mês. Só que daí, pensei em quão seria fantástico para ela vivenciar a experiência mágica de conhecer a Disney e que não era direito meu cercear essa experiência. Sendo assim, assinei a permissão e me despedi da Vivien segurando o choro e rezando para que, nem desse a louca no pai dela ficar nos States com dois filhos menores de seis anos e, nem caísse o avião... Ou o carro alugado não sofresse um acidente... Ou eles não inventassem de pedalar nos Everglades...

De volta à Cabreúva, e de volta ao trabalho de transcrever a entrevista de um cardiologista para minha revista – eu revendia o miolo a quem quisesse imprimir revistas, geralmente de distribuição gratuita –. Entrevistas de cardiologistas, especialistas em reprodução in vitro e periodontistas são um bom recheio para revistas de distribuição gratuita, além do quê, esses médicos e outros profissionais costumam pagar pelas entrevistas a fim de fazer propaganda.

Eu não queria pensar na Vivien sem mim. Na altura dos acontecimentos, já sabia que ela estava bem, que a viagem transcorreu tranquila e que estavam em um hotel classe turística de Miami antes de seguirem para Orlando de carro. Desliguei o telefone e voltei ao computador.

Mais um pouco de transcrição e cansei do trabalho. Duas palavrinhas da transcrição, "morte súbita" lembraram-me da morte súbita ou mal súbito do meu bisavô. Subi as escadas correndo só de meias grossas.

Revirei o guarda-roupas atrás da agendinha de 8 anos antes; eu sabia que a capa da agenda de 1995 era preta com ideogramas japoneses dourados e sabia que não tinha jogado fora quando me mudei de São Paulo, justamente por ter belas lembranças do começo do namoro com o pai da Vivien.

– Só tem um lugar...

Peguei uma cadeira, apoiei o encosto no gaveteiro do móvel de porta aberta e me pendurei de tal forma que consegui abrir a porta do maleiro. Para alcançar as tranqueiras guardadas ali, eu tinha que apoiar os pés no cabideiro como se fosse uma contorcionista, e colocar metade do corpo dentro do maleiro. Ação suicida.

Alcancei a agenda no fundo do maleiro. O que eu não esperava era que a trava girasse, escorregando o meu pé. Desabei no chão mas segurando a agenda... Tudo porque não quis pegar a escada no barracão e subir os 2,80m em segurança.

Permaneci deitada, só sentindo as dores que me informaram que eu estava viva. Mexi os dedos dos pés e as pernas levemente. Ao menos, poderia pegar o carro e dirigir ao posto de saúde no Jacaré para pedir ajuda. Toquei meu rosto e a cabeça em busca de sangue.

No fim das contas, só um pulso trincado e engessado. O médico e o radiologista demonstraram indiferença quando contei a minha estripulia. O médico receitou um anti-inflamatório, passei na farmácia, comprei e voltei para casa.

💮

Descobri hematomas pelo corpo inteiro durante o banho na manhã seguinte e só não doíam mais graças ao anti-inflamatório. Vesti a roupa com apenas uma mão e após preparar um café e pão de chapa, voltei para debaixo dos cobertores com o pratinho, a xícara e a agenda.

Reli todos os dados da certidão de óbito e em uma folha em branco da minha agenda, escrevi nomes, endereço e me dei até a segunda-feira seguinte para melhorar das dores e dirigir à Flores, um trajeto de 4 horas de carro.

Nesse período de cinco dias, reservei hotel em Flores, dei por encerrado o uso do anti-inflamatório e arrumei a casa para não voltar e encontrar ratos correndo sobre os móveis. Avisei aos caseiros sobre a viagem, deixei o telefone do hotel e informei sobre a ração comprada para os dois Rottweilers. Infelizmente, Bronco e Bela, meus cães que eu tanto gostava, não poderiam me acompanhar. Viajar com dois Rottweilers imensos em um Celtinha?

💮

Flores, segunda-feira.

Não sei como era Flores em 1926, mas em 2003, era até maior que Cabreúva, ao menos, tinha prédios de 10 andares e o hotel era na mesma rua da tal farmácia Rossi, a Prudente de Morais.

Deixei o carro nas mãos do manobrista, fiz o check-in no hotel de quatro andares e fui levada ao quarto. Ao desarrumar a mala, coloquei o notebook – um investimento importante para minha profissão cujo parcelamento demorou quase tanto quanto o parcelamento do Celtinha – sobre a mesinha em frente a cama de casal, assim como o caderno para repassar as anotações da investigação.

"Se eu fosse Jornalista na época em que o bisavô morreu, eu não carregaria um notebook da IBM; eu carregaria uma máquina de escrever!", pensei achando graça da viagem no tempo que faria ao investigar a verdade sobre a morte do filho de italianos da Basilicata e que foi registrado no cartório da Santa Efigênia como "filho de pai italiano e mãe brasileira".

Como eu sabia que Violetta era realmente italiana e não brasileira? Em uma das viagens à Itália, eu e meu pai fomos à Lauria, cidade em que os pais dela nasceram e descobrimos que ela nascera sim, naquela localidade pouco maior que Muro Lucano, assim como seus pais e todos os seus irmãos.

Desci à recepção e perguntei à funcionária onde ficavam os cartórios da cidade e qual seria o mais antigo. O cartório onde foi registrada a certidão de óbito continuava no mesmo prédio e situado na rua Baronesa do Japi.

– Então, por favor, peça ao manobrista para trazer o meu carro.

– Você tem certeza que quer gastar gasolina? A rua Baronesa do Japi é a terceira travessa "às esquerda".

– Ok, então. Obrigada!

Também não estava tão frio quanto em Cabreúva, que fazia 13 graus quando saí pela manhã. Estava calor, provavelmente, mais de 25 graus.

Enquanto caminhava pelacalçada estreita, eu me perguntava onde era a tal Pharmacia Rossi. Nenhuma dasconstruções, reformadas diversas vezes no decorrer das sete décadas, deixavapistas de qual delas seria a "pharmacia". Entrei à esquerda e desci a ruaBaronesa do Japi.

FLORESOnde histórias criam vida. Descubra agora