Os capangas surraram Edoardo a noite inteira em um barracão. Pela manhã, uma mulher finalmente vestida apareceu, trazendo consigo o chicotinho do cavalo.
− É esse aqui, o irmão da testemunha? - Ela perguntou com olhar de indiferença ao rosto desfigurado de Edoardo, preso às correntes de um pelourinho.
− Esse aqui, dona Eulália.
Edoardo entreabriu apenas um olho e gemeu de dor; ele era pura dor, da cabeça aos pés.
− Por... Quê? - Ele balbuciou babando sangue.
− Acerto de contas, meu caro! Seu irmão me causou um prejuízo ao testemunhar contra meus homens e eu fiquei sem três trabalhadores bons. Era para ser o seu irmão, acabou sendo vosmecê. É a vida! − Dona Eulália respondeu sem a menor compaixão e, voltando-se ao administrador, fez sinal para que aquecessem um ferro quente de marcar gado. − Você tem sorte, rapaz! Eu não vou castrá-lo e se você sobreviver, está livre para voltar para São Paulo. O seu amigo traidor foi castrado e largado no meio do mato, em cima de um formigueiro...
A mulher que usava luvas de pelica para cavalgar, segurou o ferro e o encostou no peito de Edoardo, fazendo a pele e carne chiar; o homem urrou de dor e desmaiou imediatamente.
− Se fosse o irmão, seria no meio da cara! − Ela disse ao devolver o ferro e sair do barracão.
Na manhã do dia 28, os capangas descobriram que Edoardo estava morto. Tanta surra, tanta tortura mataram o homem de 30 anos completos em junho anterior.
− Faz o quê com o defunto? - Um dos homens perguntou, acostumado em abandonar corpos amarrados em cima do formigueiro.
− Ara! Enterrá no meio da mata! - O administrador estralou os lábios.
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À noite, na casa de Bruno, o pai avisou que Edoardo já estava morto. O Farmacêutico hiperventilou e com a boca seca, não conseguiu falar.
− Dívida paga, Bruno.
O Administrador pegou seu chapéu de pontas gastas e se retirou do gabinete.
Já no armazém, Pino tinha outro problema: um homem que o viu recrutar Rui para o roubo e o chantageava.
Nervoso, Pino foi à casa de dr Bruno e quase trombou no pai do farmacêutico.
− Noite! - O capanga saudou o dono do armazém.
− Noite...
Pino bateu na porta e ao que a empregada abriu a porta, Pino gaguejou:
− Dr. Rossi tá... Eu sei onde é...
Escancarou a porta do gabinete e encontrou Bruno girando a faquinha de abrir correspondência.
− Que é? - Bruno não ergueu os olhos.
− Você me meteu numa baita encrenca! - Pino lançou-se sobre a mesa − O negro Epaminondas está me chantageando!
− Mate-o. Esse roubo era para salvar a vida do meu amigo, agora nada mais me interessa! Simplesmente, mate-o!
− Eu não sou assassino... − Pino sacudiu a cabeça − E se o Epaminondas me entregar na Delegacia, eu vou entregar você, também! Vou meter a boca no trombone!
− Tive uma ideia. Vamos dar uma volta. − Bruno se levantou da cadeira.
"Quem faz uma dívida e paga, faz duas!"
Na Fazenda Morro Preto, Bruno Rossi contou uma história à dona Eulália e seu sobrinho, o Delegado Sebastião da Silva Mendes.
− O pai do defunto telefonou pra mim. − Bruno começou − O que eu vou dizer pro pobre? Que o filho morreu na fazenda pra quitar a dívida do irmão que é doente? Cadê o corpo dele? Eu posso dar um jeito.
− Tá enterrado, já. − O administrador respondeu à pergunta.
− E agora?! O homem é carne de pescoço, vai ficar me ligando e ele é bem influente! É amigo do Presidente da República e do Embaixador da Itália! Isso não vai acabar bem pra ninguém, nem pra senhora, dona Eulália!
O delegado Sebastião remexeu-se na cadeira e olhou para sua tia.
− Qual é o nome do pai do defunto?
− Emigio Percipalle. É dono de uma escola em São Paulo, lá pros lado do Palácio do Governo. − Bruno respondeu.
O Delegado saiu da sala e voltou com uma edição de "A cigarra". De pé, leu:
− "Depois de uma temporada em Mogi das Cruzes, o Lente do Colégio Piemonte, Dr. Emigio Percipalle, foi homenageado por professores, alunos e pais em um bem concorrido banquete, prestigiado pelo senhor Embaixador da Itália, Cavalieri Giordano Loffredo Gaetani."
− Vosmecê lê "A Cigarra"? - Dona Eulália achou graça.
− Sorte sua que eu leio "A Cigarra", titia! A sua vingança acabaria mal se eu não lesse e não estivesse a par de que o pai do morto de hoje é homem das altas rodas. Será preciso arranjar um cadáver para substituir o filho do grandão. Alguém tem uma ideia de onde poderemos comprar um cadáver? − Sebastião entregou a revista à tia e tirou do bolso a cigarreira que abriu para pegar um cigarro sem filtro.
− Eu tenho. - Bruno afirmou.
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Pino fez com que Epaminondas entrasse na farmácia e fechou as portas.
− A gente tá aqui pra quê? Pra tomá supositório no cu?! - O homem riu, mostrando a boca cheia de dentes perfeitos.
− O meu sócio está vindo e eu não posso encontrar ele no armazém. − Pino tentou falar com naturalidade e o tremor no final da frase o traiu.
− Ara que gente branca é toda de salamaleques! "Não posso encontrar ele no armazém". Hómi, só me dá o dinhêro igual que ocê deu praquele muleque e eu nem vou mais te conhecer... − Epaminondas gargalhou. − O que ocêis fizeró com o forasteiro? O moleque chegô lá c'uns quadrinho de foto dele com uma moça e umas criança, tudo branco... Eu vi o forasteiro aqui, trabalhano. Pur que qui mandô o moleque robá o hómi?
Cansado do falatório, Pino partiu para cima de Epaminondas, com tapas e murros.
− Cala a boca, preto! Vou te partir os dente se não se calar!
Epaminondas permaneceu encolhido no chão até Bruno e seu pai chegarem.
− Uai! É o doutô da farmácia?! − O homem se esticou e chegou a sorrir com a presença de mais dois homens.
− Ele? Mas o almofadinha é branco! − O administrador coçou a testa.
− Quando o pai do Edoardo puder retirar o caixão, não vai dar pra saber se é branco ou preto. Vai ser só osso. - Bruno argumentou e voltou-se à Pino − Eu vou ficar lá fora. Você vai assistir?
Do lado de fora, Pino vomitou ao ouvir o som do pescoço quebrando. Bruno, fumando seu cigarro, fechou os olhos.
− Acho que vou me candidatar a prefeito desta cidade de merda...
Pino limpando a boca com o dorso da mão, ouviu a ideia do amigo e sentou-se no chão.
− Até voto em você masnunca mais tenha idéias fantásticas de "como ganhar dinheiro facil".
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FLORES
Mystery / ThrillerSão Paulo, 1918: a tentativa de assassinato de uma famosa cortesã leva um jovem ao banco das testemunhas. Flores/SP, 1926: a morte de seu irmão Farmacêutico, em circunstâncias misteriosas, muda os destinos de uma família. Em 2003 começa a saga da...