Um Caso de Parasitose Marciana

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     É mais um período de sossego pleno, daqueles em que as bolhas do aquário sobem serelepes, a breve correnteza mecânica dita o movimento das algas e o quadradinho de luz infinita mantém o clima confortável no lar, quando um  estrondo distante, abafado pela água, faz as paredes de vidro tremerem ao seu redor. Você para imediatamente, vendo as bolinhas de oxigênio se desprenderam das folhas e partirem em direção ao céu, e os outros ao seu redor fazem o mesmo. Mas nos segundos seguintes nada acontece. Somente quando alguns dos outros voltam a se mover, que outro som se faz ouvir, mais forte dessa vez, mais perto. O vidro sacode por inteiro, você sente a água balançar o seu corpo e, enquanto todos buscam uma forma de se esconder do perigo desconhecido, a porta humana se rompe em urros desesperados. 

     Enquanto você busca um espaço entre as algas para se afugentar, a humana entra afoita e fecha a porta com a mesma pressa que a abriu. Mais alguns baques são escutados, vindos do outro lado. Humanos gritam em desespero, tentando entrar, mas a humana mantém-se firme segurando o mecanismo de abertura com força. Ela arfa, está cheia de adrenalina. Os fios de queratina azuis da cor do céu em sua cabeça estão bagunçados de uma forma que você nunca viu antes. Parte da proteção de fibra sobre seu corpo está rasgada, expondo uma pele branca com feridas recém adquiridas.

     Após um tempo, o barulho do outro lado chega ao fim e as batidas cessam. Mas a humana não se move. Está de costas para você, ainda respirando fundo e aparentemente preocupada com o mecanismo de abertura da porta. Era como se esperasse que a qualquer momento outro humano fosse surgir forçando passagem e precisasse ter certeza de que ele não obteria sucesso.

     Com o fim do barulho, os outros saem de seus esconderijos e você toma coragem para nadar além das algas. A ausência de movimentos da humana traz novamente a sensação de tranquilidade no lugar, como se nada de anormal tivesse acabado de acontecer. Você volta a nadar, porém seus instintos dizem que observá-la é uma boa ideia.

     Mas nada acontece nos instantes seguintes. A humana, presa no seu torpor de adrenalina, continua a segurar a entrada, dando completa atenção à tarefa. Você então decide seguir seus companheiros, produzindo breves piruetas pelo espaço onde moram, desviando das algas e rodopiando as tocas. E a vida habitual volta a tomar sua existência e, por um certo tempo, você não precisa se preocupar com nada mais além do leve som da correnteza da água, do borbulhar da máquina de fazer borbulhas e do pendular das miúdas plantinhas que enfeitam seu lar. A água está numa temperatura tão perfeita, que você se sente parte do fluido, movendo-se sem destino a mercê da turbulência.

     É então que a humana volta a se mexer — sem alarde dessa vez. Seus companheiros, assim como você, voltam a ficar em alerta. Não havia, porém, motivos para se esconder. Ela se parece com qualquer outro humano que vez ou outra surge ali, agora que o medo não mais estampava suas feições. Procura por algo nos diversos compartimentos que humanos tinham naquele lugar. Vasculha os cantos, concentrada, até que parece encontrar qualquer coisa de valor: um pedaço de madeira e metal reluzente, que ela segura firme entre os dedos primatas e suspira com certo alívio.

     — Graças aos deuses — ela fala, admirando o objeto. Avalia-o com o tato, deslizando o dedo na fina e pontiaguda parte metálica.

     Enfim, coloca o objeto num canto e volta a garimpar os compartimentos. Encontra outros objetos metálicos, porém nenhum chama a sua atenção como o primeiro. Depois de um tempo, ela grunhe, aparentemente irritada com o azar.

     — Ótimo, não tem comida — ela fala, como se conversasse com outro humano. Mas não havia ninguém.

     Você a vê retornar ao primeiro objeto e o colocar nos dedos outra vez, voltando para a porta e se sentando no chão, encostando-se de modo a bloquear a passagem. Então, ela abaixa a cabeça entre os membros inferiores, e os abraça, escondendo o face. A movimentação cessa mais uma vez e o silêncio ganha o espaço outrora conquistado. Você então nota que seus companheiros já não dão mais atenção para ela, que de nada difere dos outros humanos que entram pela mesma passagem e mexem nos mesmos compartimentos a procura de objetos. Entretanto, você não se lembra de nenhum deles que tivesse se sentado no chão, nem que tivesse se curvado daquela forma, e por isso permanece a estudá-la.

     Mais bolhas agitam a água, tornando-a ainda mais gostosa de respirar. De repente, você percebe que a humana se levantou e vêm em sua direção com certa velocidade. Você, então, se esconde antes que haja tempo dela te alcançar. Seus companheiros o imitam assim que percebem o perigo.

    — Ah, que fofinhos... Peixinhos... — ela volta a falar. De onde você está, consegue vê-la parcialmente se aproximando, colocando o rosto diante da parede de proteção, buscando enxergar o seu esconderijo. Sem sucesso, ela se volta para uma pequena placa ao lado da proteção. — Lambari — ela fala. — São tão bonitinhos, não imagino como conseguem comer seres tão fofos e inofensivos... Bom, ao menos terei companhia até me encontrarem. Ei, amiguinhos — ela te busca novamente. — Cadê vocês? Não tenham medo.

     Ela fala muito para o comum de um humano, você percebe. Se lembra dos outros humanos que entravam ali, sempre com pressa, mal olhavam para você e seus companheiros. Nenhum deles chegava tão perto da barreira de proteção, nenhum deles usavam vestimentas daquela cor, nem tinham o cabelo anil. Muito menos tinham sangue escorrendo pelo canto da face.

     — Estamos sozinhos aqui — você escuta ela dizer. — Tá uma bagunça lá fora. Acho que os donos desse lugar... Bem, não devem ter conseguido escapar.

     Um de seus companheiros resolve se aventurar para além das tocas, nadando sob a luz e certamente concluindo que a humana não traria riscos. Sem demora, outro companheiro faz o mesmo. Depois mais outro.

     — Ah, aí estão vocês — ela suspira e mostra os dentes. — Tão pequeninos... Como alguém pode fazer ensopado de vocês nos dias de hoje? Quer dizer, não gosto de julgar a cultura alheia, mas brasileiros deviam repensar essa atrocidade... Acho que vocês tendem a concordar comigo, não?

     Decidindo que ela não traz perigo, você resolve sair do esconderijo. A água neles é parada demais para o seu gosto, fora a escuridão, que de nada te atrai. Ela te observa com atenção assim que te vê pela primeira vez.

     — Ei, amiguinho, você tem uma pintinha diferente. Tem formato de flor. — Ela mostra os dentes outra vez. — Muito prazer, Florzinha. Meu nome é Edel. Parece que teremos aqui um tempinho para nos conhecer. As coisas saíram um pouco de controle lá fora. — Ela volta a observar a entrada, sua feição então se torna mais séria; o medo retorna aos olhos de cor de algas. — Sabe como é, né? Um caso de parasitose marciana na tripulação.

     E então ela se senta no seu antigo posto próximo a entrada em silêncio. O objeto metálico permanece preso aos dedos, como se sua vida dependesse dele. Você não costuma dar atenção para os humanos, muito menos consegue entender os sons que eles falam pela boca, no entanto você reconhece quando um animal está acuado. E ela estava.

Flores, Vermes & BarbatanasWhere stories live. Discover now