Sinto Muito

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Mais alguns ciclos noturnos se passaram. A humana agora despeja outros pedaços de comida dentro do aquário e você, com calma, vai até eles e abocanha o primeiro. Não precisa de nenhuma pressa, pois você é o último peixe que resta ali. A carne de seu último companheiro não está mais tão saborosa sem o frescor do dia anterior. O que importa, contudo, é que mata a sua fome por mais um ciclo. Você ataca outro pedacinho flutuante sem titubear. Depois outro. Com a diminuição da concorrência, ela passou a te dar pedaços generosos e você já não sente a fome te espreitando.

Enquanto come, também a observa retirar os últimos resquícios de carne da carcaça de um de seus companheiros, cavando com a ponta do objeto cortante as cavidades do crânio. Diante da dificuldade aparente, nota que já não há mais nada a ser retirado dali, porém ela parece ser insistente; quer porque quer consumir cada fiapo. Somente após um longo tempo de tentativas, desiste e joga o crânio no canto do ambiente destinado aos dejetos, onde também repousam espinhas, fezes e urina. Com um suspiro, ela se vira pra você e colhe um pouco da água do tanque com as mãos. Você nada para próximo de onde ela está, o que a deixa de certa forma desconfortável. É como se mantivesse a cabeça cabisbaixa, evitando te olhar diretamente. Você então a analisa com mais atenção, preocupado. O que está acontecendo?

Faz alguns ciclos que ela já não conversa mais, você pontua. A voz dela está cada vez mais rara, à medida que o tempo vai passando. Os sorrisos foram os primeiros a desaparecer. Mas os olhares tinham permanecido firmes até o dia anterior, quando você começou a notar uma certa estranheza. E o que antes era somente uma impressão, agora estava nítido; por algum motivo, ela não quer sua aproximação. A cordialidade e a cooperação parecem ter chegado ao fim.

Com o insucesso na comunicação, você perambula pelo aquário. Agora que está sozinho, o local parece bem maior e mais calmo. Um pouco mais triste também, tem que admitir. As tocas se tornaram escuras além da conta, assim como as bolhas que são criadas periodicamente não tem mais a mesma diversão sem seus companheiros saltando meio a elas. Contudo, você sabe que esse saudosismo só está presente porque seu estômago está cheio o bastante para se preocupar com coisas menos importantes.

No seu passeio, alcança as pedras depositadas no fundo. Já não há mais algas no aquário, pois a humana tentara comer todas antes de partir para o seus companheiros. Mas, com o passar do tempo, novas estruturas começaram a se formar sobre a superfície rochosa, cobrindo-a com minúsculos filamentos verdes. Aquilo te incomoda um tanto, porque significa que está na hora dos humanos fazerem a limpeza. Todavia, já não espera que eles apareçam; pois eram os mesmos humanos que te traziam comida.

Alimento... Você observa as pequenas plantinhas verdes sobre a pedra e uma intuição o leva para mais perto delas. Com uma mordiscada, você prova o sabor. E é incrivelmente gostoso! Mesmo sem fome, come um pouco mais, garantindo por um tempo maior que ela atrase a chegada.

Só então você repara que a humana voltou a te observar. Mas não é o mesmo olhar que ela tinha outrora. Na verdade, você pondera, a humana que está diante de você pouco lembra a do primeiro dia. O cabelo azul está opaco e despenteado, o suor fê-lo grudar a testa, partes das vestes foram arrancadas e cortadas para serem usadas para limpeza do corpo, os lábios estão pálidos e fissurados. Entretanto, a mudança maior está nas feições; no olhar que antes trazia emoção, mas que agora exprimia nada além do habitual desejo de um mamífero qualquer. Diferente de você, ela ainda tinha fome e o desejo de saciá-la era o que começava a mover suas ações. Por isso ela te observava com tamanha concentração.

Há uma lágrima represada nas maçãs proeminentes.

— Sinto muito, Florzinha — ela fala. As pupilas dilatadas te dão o sinal. — Eu não tenho escolha. Prometo que vai ser rápido.

Flores, Vermes & BarbatanasDonde viven las historias. Descúbrelo ahora