Você Já Morreu

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A noite passa como todas as outras anteriores da sua vida; numa mansidão plena. O escuridéu era bem vindo, pois só assim você se sente confortável repousando numa das tocas. Porém, assim que o ciclo noturno se encerra e as luzes se acendem para aquecer a água, você é subitamente acordado pelo incomum movimento de ondas. Seus companheiros se agitam, afoitos por saírem o mais rápido de onde estavam e começarem a manobra de escape. Você faz o mesmo, sem tempo sequer de respirar mais fundo. O som da turbulência logo lhe denuncia que há algo grande dentro do aquário. Muito grande!

Atônito, você também começa a nadar para todos os lados num zigue-zague desgovernado, de modo a não se tornar um alvo fácil para o que quer que estivesse ali.

— Me desculpa, amiguinhos. — Não tarda a surgir a voz da humana. Só então você nota que o que está dentro da água é um de seus membros; os dedos primatas compridos agarrando as algas que faziam parte da sua casa. — Estou com fome demais pra ficar olhando pra essas plantinhas suculentas.

Ela então as puxa, arrancando com extrema facilidade o que você jamais pensou que um dia sairia do lugar. A areia do fundo se levanta no processo, turvando sua visão, o que te deixa ainda mais desorientado. Você para, percebendo que a mão humana acaba de sair da água, mas seus amigos demoram a entender que o perigo passou. Alguns até colidem com o vidro da parede, outros se chocam entre si.

A humana se arrasta novamente para o seu posto com as algas na mão. Fora da água, as plantinhas parecem tão mais indefesas e desfalecidas. Até o verde não brilha como de costume. Você a observa tirar pedaços das plantas com o objeto com lâmina de metal, pequenas tiras no início, e levar em direção a boca.

— Não é tão ruim quanto pensei que pudesse ser — ela balbucia, enquanto mastiga. — Espero que não seja venenosa.

E então leva mais tiras a boca; longas tiras dessa vez. Enquanto mastiga, ela suspira e exprime pequenos gemidos de alívio. As algas parecem ser o que ela precisa no momento.

O dia passa um pouco mais calmo do que o anterior, com a estranha humana a maior parte do tempo sentada e reflexiva. Quando cansava da mesma posição, deitava no chão, brincando com filetes da alga que por algum motivo ela não tinha comido. Quando se cansava de deitar, levantava e andava pelo espaço, de um lado para o outro, esticava as pernas e os braços, mexia um pouco nos compartimentos que ali existiam e, por fim, voltava a se sentar.

Enquanto o dia passa e a humana persiste em ficar ali sem motivo aparente para você, uma indagação começa a se forma em sua cabeça. Onde estão os outros humanos? Aqueles normais, que entram, mexem nos compartimentos e saem sem se demorar. Ou aquele humano que vem todo dia colocar a ração para você e seus amigos se alimentarem. Nenhum deles apareceu desde que aquela humana surgiu. A ração já tinha acabado, não havia sequer mais um grão sobre a areia do fundo, seus companheiros tinham consumido os últimos no dia anterior. Ainda não estava com fome, mas você sabe que uma hora ou outra ela chegará para todos.

Os humanos voltarão, você tem certeza disso. Eles sempre voltam.

Seu instinto diz que já se passou da metade do ciclo diurno, quando você escuta de novo o objeto barulhento. É um som distinto do primeiro, reverbera menos e, por isso, não te incomoda tanto. A humana também não está tão aflita como da primeira vez. Com o objeto na mão, ela espera, espera, até que o som desaparece e o enfadonho craquelado retorna, para seu aborrecimento.

— Alô? — uma voz grave ressoa do objeto.

A humana endireita o corpo e limpa a garganta, antes de falar:

— Oi... Oi, Morris.

— Ah... Edel, é você?

— É, sim. — Um longo silêncio se perpetua, até que ela o rompe: — A essa altura do campeonato, vocês já devem estar sabendo o que aconteceu, eu acredito.

Flores, Vermes & BarbatanasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora