Não Tem Ninguém

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...seus companheiros tinham ido embora...

...água... ...Florzinha... era sua vez...

...florzinha...

...as bolhas flutuam rumo ao céu...

— Florzinha! Calma, calma, eu vou te salvar!

Você está em movimento; sabe disso porque sente o ar batendo velozmente sobre seu corpo. E os solavancos, enquanto a humana caminha aos tropeços. Tenta se mover, mas percebe que, pela segunda vez naquele dia, está preso entre as compridas falanges. Mas o toque dessa vez é diferente. Apesar das suas escamas secas roçarem de maneira esquisita na pele humana, você está longe de se sentir ameaçado como outrora. O calor humano, por mais que não alivia a dor e nem salva sua vida, é confortável de certo modo.

As luzes piscam para além das suas órbitas opacas. O ar se torna mais frio. Portas abrem e se fecham. Coisas são reviradas e jogadas para longe.

— Só mais um minuto.

O som de algo sendo girado alcança sua audição, e logo então você constata que está sendo deixado numa superfície fria de metal. A água começa a escorrer à sua volta. Lentamente. Sua vontade é saltar para todos os lados, se molhar por inteiro de uma vez, tentar buscar a fonte de onde aquele pequeno filete se escorrega. No entanto, está cansado e fraco demais para isso, então apenas aguarda e tenta controlar sua sede. E de pouco em pouco, a água volta a te cobrir; primeiro uma nadadeira, depois outra, logo mais uma banda inteira de seu corpo. Uma das brânquias, para seu alívio, já está tentando sorver oxigênio. Não tarda muito e você consegue se manter novamente em pé.

Você escuta murmúrios da humana, às vezes de dor, mas na grande maioria de desafogo. Demora alguns instantes para que seus olhos absorvam a umidade e voltem a enxergar mais do que borrões. E mesmo após o retorno da visão, você percebe que alguns danos são irreparáveis. Mas há pouco o que reclamar, essa é a verdade que logo pondera, pois aos menos os momentos de desespero tinham ficado para trás.

Com a volta da visão, finalmente consegue analisar seu novo cantinho: um utensílio humano feito de alumínio, grande e de paredes circulares altas que te impedem de ver boa parte do que está do lado de fora. Olhando para cima, você nota que a humana te observa atentamente com os olhos ainda angustiados. A água à sua volta não parece de toda limpa; um rosado sutil e o habitual cheiro de sangue denunciam que as mãos da humana não se encontravam tão limpas quando te colocaram ali. Após a dura batalha que acabou de acompanhar, aquilo não é nenhuma surpresa. É também de se esperar as caretas de dor, que vinham esporádicas, como se algo estivesse lhe causando pontadas minuto sim, minuto não.

Um grande baque vem de longe, e ela desvia a atenção para outro lugar depois de muito tempo te contemplando.

— Quem está aí? — ela diz, endireitando o corpo e se colocando em alerta.

Você daria tudo para ver o que está para além das bordas metálicas daquele recipiente, porém, a julgar pela surpresa impressa nas rugas ensanguentadas da humana, seu instinto diz se tratar de outro humano.

— Senhorita Edelvaisse Dobrow?

— E-eu... E quem é você? — Ela arregala os olhos. — Quem são vocês?

— Fique calma e permaneça onde está, por favor. Somos a equipe de resgate da Space Airlines, viemos a procura de sobreviventes. — Você não consegue compreender, contudo aquelas palavras parecem ter um efeito positivo sobre ela. — A senhorita está bem?

Lágrimas imediatamente escorrem sobre o rosto manchado e, então, ela olha para você, sorrindo.

— Sim, sim. Estamos bem.

— O que está fazendo aqui na cozinha?

— Conseguimos sair da dispensa faz alguns minutos... Por que demoraram tanto?!

— Viemos o mais rápido possível, senhorita. Como conseguiu sair?

— Lutei — ela fala, com os lábios trêmulos. — Eles não gostam de água. Vocês sabiam disso? Eles tem pavor de água... Eles se cortorcem, derretem e morrem com uma simples gotinha. Vocês sabiam?

— Sim, senhorita.

— Então porque ninguém é informado disso? — Apesar do aparente alívio, havia fúria em sua voz. — Porque escondem essa informação?!

— Acalme-se. Se todos os marcianos soubessem, tentariam proteger seus lares com o pouco de água que possuem. Seria um caos, senhorita. Isso é pro bem de todos.

— Bem de todos? Deixar que morram os mais vulneráveis?

— Edelvaisse, — uma outra voz se impõe — voltemos ao que realmente importa: você lutou com os parasitas? — Ela balança a cabeça, um tanto acuada de repente. — Então teve contato direto com eles, correto? Pedimos para se manter longe.

— M-mas... E-eu não tive escolha.

— A senhorita tem ciência do protocolo de quarentena na Terra, não tem?

Ela para por um instante. Os olhos vagos e a mandíbula cerrada ao proferir:

— Tenho, sim.

— Sabe que os terráqueos vão exigir todos os tipos de exames para ter certeza da sua não contaminação? Está ciente de que nem todo mundo da Terra aceita de bom grado estrangeiros que passam pela quarentena e que, muito provavelmente, você será tratada como uma pária da sociedade? — Ela balança a cabeça mais uma vez. — E mesmo assim a senhorita prefere terminar a viagem a retornar para Marte com nossa equipe?

— Com toda a certeza do mundo.

— Pois bem, então. Mãos para o alto e sem movimentos bruscos. Não tente resistir.

E, então, te fitando novamente, ela desaparece de seu campo de vista.

— Espera! — Você escuta sua voz. — Salvem ele! O Florzinha! Ele está ali. Vocês precisam salvá-lo, por favor.

— Não tem ninguém ali.

— Acalme-se, senhorita. Logo estará se recuperando do trauma.

— Vocês não entendem! — Eles estavam se afastando, você logo percebe. A voz e os passos cada vez mais longe. — Vocês precisam salvá-lo! Elo... Por favor!

É a última vez que você a escuta. E depois, apenas o silêncio. Não há companheiros, nem bolhas, nem algas, mas há o sossego do silêncio outra vez. Você nada, para um lado, para o outro e depois repete o processo, aproveitando por completo a tranquilidade. O filete de água que cai, contínuo, é o único ruído presente. Te traz um conforto que há muito tempo não sentia. Sem sombra de dúvidas, aquele era um bom lugar para ficar e aguardar que outro humano aparecesse, trazendo, quem sabe, comida. Por enquanto, está finalmente em paz.

Flores, Vermes & BarbatanasWhere stories live. Discover now