Sonhei Com Um Banho de Mar

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Você já havia deixado de contar, no entanto após tantos ciclos diurnos sem o retorno dos humanos que traziam a sua ração, é de um imenso alívio receber algo para comer outra vez. Você abocanha os pequenos pedaços, assim como seus companheiros, e imediatamente se sente melhor. Tinha medo de que a fome o levasse, mas uma solução inteligente havia chegado. Você assiste agradecido à humana também comer alguns pedacinhos.

— Sabe, Florzinha, quando eu era criança, gostava de me imaginar tomando um banho de mar. — Ela sorri; uma ação cada vez mais rara, que aos poucos vai dando espaço para o olhar atormentado. O sorriso, no entanto, destoa da voz cansada. — Não sei se você conhece muito de Marte, mas a quantidade de água lá ainda é escassa...

Ela para e te observa abocanhar mais um pedacinho que flutua sobre a água.

— Sim, sim, estão trabalhando pra melhorar a situação. Era bem pior antigamente, acredite. Os primeiros marcianos tinham que viver com muito pouco. Agora já podemos tomar banho uma vez a cada quinze. Um banho de 2 minutos, mas é um banho. Você tem que agradecer, viu, por poder nadar a vontade nesse aquário limpinho.

Você nada para próximo ao vidro e ela dá algumas batidinhas com um dos dedos, como se quisesse chamar sua atenção. Depois, volta a falar:

— Sempre sonhei com um banho de mar, deve ser maravilhoso. Podia até ser da terra natal de vocês, lá no Brasil. As imagens de lá são lindas! — Ela leva mais um pedaço à boca. — Prometi pra mim mesma que quando a nave aportasse em Pequim, a primeira coisa que eu iria fazer era comprar uma roupa de banho. Já imaginou, Florzinha, viver num mundo onde você pode ter uma roupa de banho? — Ela olha para o nada, refletindo. Fica por tempo demais presa a algum tipo de visão que você era incapaz de alcançar. — Você sabia que a água do mar é salgada? Acho que você não iria gostar muito disso, não é?

Seus companheiros estão terminando a grata refeição. Você nada para o outro lado, aproveitando que a máquina de fazer bolhas acabou de ser acionada e a água ficará ainda mais pura.

— Papai sempre dizia que os terráqueos eram fracos, porque tinham tudo do bom e do melhor. E que nós marcianos eram a evolução da espécie humana, porque tínhamos aprendido a viver com a escassez e que seríamos os responsáveis por colonizar lugares ainda mais distantes da nossa galáxia. Mas eu nunca vi beleza nesse discurso patriota dele. Achava um saco, essa era a verdade. Muitas vezes, quando ele começava a falar mal da Terra, eu me pegava sonhando de novo em estar lá. Sonhava em ver ao vivo aqueles tons bonitos de azul e verde e branco. Marte é monocromático demais pra mim.

Você rodopia onde antes ficava as algas que ela tinha arrancado sem piedade. Todavia, você não sente mais falta das plantas; já estava se acostumando com a falta delas no aquário.

— Como adivinhou? Sim, foi então que eu comecei a pintar — ela prosseguia incansavelmente. Apesar da palidez e das protuberantes manchas em volta dos olhos, era visível que o alimento tinha dado fôlego novo para ela também. — Minhas pinturas das paisagens de Marte usando as cores que são comuns na Terra logo chamaram a atenção. Mas, claro, apenas da parte dos humanos que se importa com arte: os terráqueos. É claro que sim! Quando eu comecei a receber as mensagens de incentivo, de apoio, de parabenização... O sentimento que já existia dentro de mim foi crescendo, crescendo... Quando eu dei por mim, já não cabia mais no meu peito. Eu já não pertencia mais àquele mundo, já não podia mais viver lá sabendo que do outro lado tinha gente que gostava de verdade do que eu fazia. E quer saber, não me arrependo. Sim, é isso mesmo que você ouviu: não me arrependo. Prefiro morrer do que voltar pr'aquele planeta.

Ela mordeu o último pedaço e então joga o restinho dentro d'água. Entretanto, não em qualquer lugar; ela joga num local estratégico, próximo de onde você está, para que você seja o primeiro a alcançar. Você come o pequeno pedaço numa bocada só e volta para o fundo. Ela exprime um novo sorriso, satisfeita com o sucesso do seu plano.

Você não consegue compreender o que ela fala, porém se acostumou com sua voz. Arriscava até pensar que se afeiçoou a ela; a nova humana que te traz comida. Podia se acostumar a tê-la por perto, você conclui.

Flores, Vermes & BarbatanasWhere stories live. Discover now