Gritos na Praia

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Praia de Mundaú, Ceará

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Praia de Mundaú, Ceará

08 de fevereiro

7h16min

Kylie Bell se espreguiçou vagarosamente sobre a cadeira de praia. A australiana chegou muito cedo com os filhos a fim de aproveitar ao máximo o litoral ensolarado do Ceará, região famosa por praias paradisíacas. Ao longo do litoral, podia ver áreas bosquejadas e ouvir os pássaros pipilando nos arredores. A região de Mundaú, próxima a uma vila pesqueira, tinha ares de natureza intocada e piscinas naturais formadas pelo mar. Era isto que Kylie buscava. Queria sossego depois de ter enfrentado uma separação difícil e ter conseguido a guarda dos filhos nos tribunais.

Kylie fizera a vida nos Estados Unidos como colunista do Washington Post, numa pequena seção de viagens. Também prestava consultoria ao National Geographic Magazine. Nos tempos vagos escrevia manuais de turismo, o que lhe dera a chance de assinar contratos com duas grandes editoras americanas. Enfim, era uma mulher bem sucedida.

À procura de praias perfeitas para assessorar turistas desorientados, acabou por encontrar uma de aspecto formidável. Sabia da fama do litoral brasileiro e por isto o país a atraía tanto. Visitara diversas praias. Mas aquela, em especial, era um pequeno paraíso. Lembrava-lhe a praia de Oahu, no Havaí. Tempos inesquecíveis para Kylie. Fora lá que conhecera o ex-esposo, um fotógrafo americano muito charmoso de origem italiana.

Ela tirou os óculos escuros, erguendo-se da cadeira à procura dos filhos. Achou ter visto algo no mar. Apesar de adorar praias, sempre tinha receio de entrar na água. Ficava ainda mais precavida quando assistia aos noticiários sobre ataques de tubarões. Por isso, permitia que os filhos brincassem apenas na areia, no limiar da espuma marítima das ondas. Nada além disso.

Quando virou a cabeça de um lado para outro e não viu Adam, levantou-se.

− Onde está seu irmão, Nancy? − gritou para a filha. − Ele só tem três anos!

− Mamãe, o Adam está bem atrás de você − a menina retorquiu, impaciente. Era ruiva como a mãe, o cabelo na altura dos ombros, o nariz pequeno melado de bloqueador solar. Ela tinha seis anos.

− Não quero que andem separados – ordenou. – Fiquem juntos! Não há mais ninguém na praia. Está vendo?

Na verdade, havia um casal não muito distante, mas ultimamente Kylie perdera o senso de segurança. Ficara mais agressiva que o normal. Às vezes, sentia-se impotente diante de pequenas situações do cotidiano e acabava por tomar decisões precipitadas. O casamento não a fizera feliz, mas o divórcio a deixara ainda pior.

− Alguém está com fome? − Kylie perguntou. Abriu uma cesta de piquenique, arrancando um naco do sanduíche de atum que ela mesma fizera. Não gostava de comida brasileira. Puro preconceito e nojo, admitia. As crianças nem a olharam, tão distraídas em suas atividades na areia. − Quem fica com fome num lugar como este? − falou para si mesma, rindo.

Voltou à cadeira de praia, observando Adam na areia. Sentada, tirou o bloqueador solar da bolsa, espremeu o frasco na palma da mão e passou no rosto e corpo do filho. Os olhos azuis do menino brilhavam. Ela deu um beijo da ponta do nariz dele e deixou que brincasse.

Deitou-se na cadeira, tentando cochilar, mas sempre atenta a qualquer ruído diferente do bramido do mar ou do pio das aves da região. Ficou naquele estado inerte, entre o sono e a consciência. Um vento morno aquecendo seu corpo. Ouviu a voz da filha ao pé do ouvido:

− Mamãe, o Adam encontrou uma coisinha na areia.

− Está certo. Não se afastem muito − falou ela, com a voz embargada de sono. Virou a cabeça para o outro lado e relaxou o corpo.

A menina voltou a brincar com o irmão, às vezes dando gargalhadas agudas. Kylie ainda preveniu sonolenta, com a voz branda:

− Tenham cuidado.

Talvez as crianças nem a tivessem escutado. Deixe que se divirtam, pensou consigo mesma. Queria tirar outro cochilo, enquanto a voz da filha se confundia ao rumorejar das ondas.

− Tome um graveto, Adam. Agora pode mexer nessa coisinha − Nancy disse, referindo-se à criatura que nadava dentro da poça d'água formada pela maré.

Era como uma cápsula oval rosada, perto de trinta centímetros de comprimento e dezenas de filamentos gelatinosos que se agitavam. Nas extremidades, dois filamentos mais longos se destacavam dos outros.

Outras criaturas como aquela nadavam na água da praia, não muito distante da poça que se formou. A que se afastou do grupo grudou-se ao graveto na mão de Adam e subiu devagar, movendo-se na direção de seu braço.

O clima ficou mais agradável depois que uma nuvem cobriu o sol. Kylie se sentia tão confortável ali que bocejou com prazer. Aquele paraíso valia a pena. A praia não tinha a areia quente, um critério importante para que as crianças não se queimassem. Esboçou na mente os quesitos que escolheria para descrever aquele lugar em seu artigo. Só não gostou muito da relva florida circunvizinha à praia. Podia haver tocas de cobras. Isto a fez pensar nos filhos, mas tentou desistir das preocupações por alguns minutos. Precisava se controlar. Queria voltar ao descanso tranquilo e à mente livre de aflições.

Foi quando relaxou o corpo que ouviu o choro de Adam, seguido pelos gritos de Nancy.

UNICELULARWhere stories live. Discover now