Correlações Tóxicas

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Instituto Butantan, São Paulo

10 de fevereiro

10h12min

A Dra. Cristina Schneider percebeu a técnica em bioquímica, Michelle Bellano, franzir o nariz depois de ler os resultados impressos dos testes de duas amostras. Schneider, uma cinquentona que emanava competência, liderava as pesquisas no Laboratório de Toxicologia. Ouviu Michelle, contrariada, dizer:

− Estranho. Eu não entendo.

− O quê? – Schneider perguntou.

− Duas amostras chegaram ontem, uma pela manhã e a outra à tarde. Em ambas, a taxa de envio mais cara e rápida dos correios. A primeira veio da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. A segunda com uma solicitação escrita à caneta, "identificar urgente", de um Hospital Público do Ceará.

− Mas é frequente hospitais e clínicas enviarem amostras quando a identificação é contraditória ou falta aparelhagem adequada. Não vejo nada de errado nisso.

− Me deixe terminar – Michelle pediu. – Suspeito que são duas toxinas produzidas por microorganismos diferentes.

Schneider arqueou as sobrancelhas, sem entender. Michelle continuou:

− Os testes de análise transcriptômica e de enzimologia das oligopeptidases comprovam que a primeira tem peptídeos bioativos comuns em toxinas produzidas por bactérias, mas o método Western blot não funcionou. Já a segunda se assemelha a uma toxina fúngica, talvez da família dos aspergillus, mas ainda não sei.

− O que há de estranho? Identificamos toxinas produzidas por protozoários e outros micróbios com frequência. Se está com dúvida, por que não usa o ATX? É o aparelho mais adequado para identificação das toxinas.

− Eu fiz isso, mas acho que está quebrado. Só pode estar. O aparelho imprime números múltiplos ao invés de limites de dados proteicos.

− As substâncias podem estar alteradas, por isto o aparelho não as identifica corretamente – Schneider rebateu, fitando-a por cima dos óculos.

− Duas substâncias no mesmo dia? O problema são os padrões estabelecidos que fogem do normal. Coincidentemente também vieram do nordeste do país.

− Uma correlação estranha − Dra. Schneider concordou, intrigada. − Qual é a potência de cada uma delas?

− Você não entendeu. As duas toxinas estão no mesmo padrão toxicológico. O computador fez o cálculo baseado no parâmetro normal de uma toxina do tipo bacteriana e fúngica.

− Uma potência de quantas vezes?

− Quase um milhão.

− Ave maria! Um milhão? – repetiu, surpresa.

− Foi o que eu disse. Um milhão − Michelle confirmou. – O computador chega a uma estimativa bem próxima desse número. Não pode ser o equipamento. Levei a manhã toda para confirmar os resultados.

Schneider se lembrou que a maioria das amostras com alterações químicas eram mal embaladas ou mal armazenadas. Uma bolha de ar podia estragar tudo. Amostras com partículas de glicose, por exemplo, chegavam em forma alcoólica se determinados tipos de bactérias se proliferassem na substância. Pensou na possibilidade.

− Você verificou se as embalagens com as amostras chegaram avariadas?

− É claro. Estavam perfeitamente seladas. A outra estava em um tubo criogênico, daqueles para armazenagem de sêmen bovino – Michelle explicou, passando os testes impressos a Schneider. – O que me deixa intrigada é o fato destas toxinas serem mais potentes que a peçonha da Lachesis muta. Ambas são tão perigosas quanto a peçonha de uma serpente. Tenho a impressão de que estas toxinas foram submetidas a algum processo de potencialização. E mais uma coisa me chamou atenção. Os testes de cromatografia líquida identificaram proteínas decompositoras na amostra da toxina bacteriana. É altamente necrosante.

Schneider sabia que sintetizar substâncias a partir do veneno de jararaca, por exemplo, era um procedimento regular para composição de medicamentos e vacinas. Sempre lidou com muitos tipos de veneno, mas, em vários anos de pesquisa, nenhuma toxina daquela natureza havia chegado ao Instituto.

– Eu repito, há alguma coisa fora do padrão nestas amostras. Vou esperar o resultado das placas de Petri.

− Como é a natureza da viscosidade de cada uma?

− Bem diferentes. A primeira é espessa e de tom rosado. A segunda é um fluido de densidade leve e cor leitosa. Talvez eu tenha de levar um dia ou mais para tirar outras conclusões. Mas acho que eles têm pressa pelos resultados. Preciso enviar depressa ao Hospital e à Universidade as informações técnicas com os testes toxicológicos que temos aqui. Vou fazer uma observação sobre possível amostra avariada – Michelle disse, movendo-se em direção à porta.

− Espere – Schneider pediu. – Enviar dados imprecisos não ajudaria em nada. Congele as amostras.

− Mas por quê? – Michelle disse, admirada.

− Vou mandar para o Laboratório de Toxicologia da Universidade de Kentucky. Vai ficar aos cuidados de Paul Atkins, um bioquímico pesquisador que conheço há anos. O problema é que está numa convenção em Genebra. Só vai poder nos ajudar semana que vem.

− Mas como fica o pessoal que enviou as amostras?

− Michelle, nosso laboratório não trabalha com resultados imprecisos ou duvidosos. Se uma amostra tem problemas, mandamos fazer análises em outro laboratório. Duas substâncias apresentam correlações tóxicas e demostram resultados anormais; só consigo supor que haja erros de manipulação. Pode acontecer no percurso da análise.

− Fiz tudo certo, juro por Deus! Dentro dos padrões laboratoriais – a técnica se defendeu.

– Mesmo em vinte anos de laboratório, já cometi erros.

− E se não for um erro?

Schneider suspirou, leu de novo os testes impressos e concluiu:

− Então suponho que sejam as toxinas mais estranhas e incríveis que já testemunhei.

UNICELULARWhere stories live. Discover now