Prólogo

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Em uma cascata de raios e ventos, os marinheiros se esforçam para manter o curso. A tempestade se fortalece mais a cada segundo, como se tivesse vida própria e motivação para continuar. Destruindo tudo pelo caminho, ela prossegue levantando as ondas como se o próprio kraken estivesse agitado, escavando os oceanos com sua fúria. Desesperados por abrigo, com as vozes esganiçadas e respiração agitada, os marinheiros cantam uma canção. A melodia sai suave, semelhante a um assovio e, se alguém estivesse prestando atenção no tom, poderia contestar a afinação. Mesmo assim, eles prosseguem cantando, mantendo viva a esperança de levar paz ao fundo de suas almas amedrontadas com os perigos do grande Mar Negro.Com um pouco de dificuldade, um homem de cabelos acobreados como o fogo tenta consertar a escada de cordas que leva até o topo do mastro. Os pingos de água caem como navalhas do céu, cortando seu rosto com o frio e dificultando sua visão. Frustrado, ele se empenha para se concentrar melhor nos nós e nos fiapos se desfazendo diante dos seus olhos.— Mais uma corda! — o homem grita a uma série de ajudantes, que, distraídos, mal percebem que ele diz alguma coisa. Agitado, ele gesticula constantemente até que eles percebam seu pedido.— De onde veio tanta água e fúria? — o garoto que estendeu a corda pergunta, pasmo com a força da tempestade.— Do próprio inferno, eu aposto — um outro responde.— Pode ser um sinal — o primeiro comenta. — Talvez seja uma tempestade que precede a vinda da serpente do mar. Já ouvi falar que, sempre que ela ataca, a chuva é mais intensa.— Não seja imbecil — o outro intervém. — Já ouvi que, quando uma serpente ataca, é tão silencioso que mal se pode sentir o movimento do barco sobre a água.O homem consertando a escada, amarrando as cordas e fazendo os nós, agora já terminando, revira os olhos perante a escuta das lendas do mar, cansado. Ele coça sua barba e passa os dedos sobre o cabelo vermelho-alaranjado.— Temos que ir mais a oeste — ele diz. — As nuvens calmas estão naquela direção.— A oeste? — um questionamento soa. Os ombros do homem ruivo enrijecem quando ele se vira de lado para deparar-se com o capitão. Ele encara a figura de autoridade no navio, um ancião alto com cabelos brancos, mas com braços ainda fortes e voz imponente. — O Mar Negro não tem fim. Navios afundam a oeste!— Afundaram — o que consertara a escada corrige. — Já faz um século quase! Ninguém nunca mais voltou lá para descobrir.— Está louco?! — os marinheiros começaram a gritar.— Quer mergulhar a oeste do Mar Negro? — o outro fala. — Não gosta de estar vivo?— Silêncio — o capitão ordena. Todos obedecem e por um segundo o homem ruivo só pode ouvir o som das ondas e da tempestade. — Vou checar os mapas, alguém me traga uma bússola que funcione — ele complementa, já caminhando para a sua cabine.O homem que consertou a escada de cordas agora estava escorado na sua própria obra, pensando em uma forma de fugir dos olhares de raiva e repreensão que o cercavam.— Sabem que eu estou certo — ele declara. — Não deve existir nada pior que o kraken.— Sereias — um dos marujos grita com olhar amedrontado.O homem ruivo solta uma gargalhada.— Mitos — ele se impõe. — Ninguém vê uma sequer há centenas de anos.O marinheiro amedrontado se irrita e, acompanhado de dois ajudantes, avança sobre o homem ruivo. Alguns socos fracos acertam seu rosto, mas os outros não consideram a breve violência o suficiente para repreender a enorme bobagem que saiu de sua boca. Decidem então amarrar uma corda em seu pé e colocá-lo na amurada, quase jogando-o no mar.— Tentar suicídio no mar dos demônios é tolice — o marinheiro raivoso fala enquanto o homem ruivo grita, quase caindo do barco —, mas diminuir o peso do barco jogando seu corpo para fora pode ajudar.Os outros o lançam para fora do navio.No silêncio sob a superfície do mar, o homem ruivo mergulha dentro de uma água densa, fosca, negra. Sem nenhuma gota de oxigênio e privado de luz, ele afunda devagar, tentando obrigar seu corpo a manter todo o ar dentro dos seus pulmões em uma tentativa de retardar a própria morte. Em poucos segundos, enquanto seu corpo afunda, ele vê um enorme amontoado de pedras negras que revestem uma depressão enorme. Um fosso negro. Forçando seus olhos para enxergar melhor, ele tenta discernir o que nada perto desse fosso ao longe. Mesmo dentro do silêncio, ele pode jurar ter ouvido gritos. Mal ele se vira de costas, percebe a existência de um vulto que se aproxima dele de súbito, o assustando. O pouco ar que ele guarda em seus pulmões se esvai quando o vulto se multiplica por quinze e os borrões se tornam imagens ameaçadoras de monstros com olhos brilhantes, caudas de peixe e cabelos enormes. Os monstros o seguram de todos os lados, tentando arrancar seus membros. O homem ruivo grita, mas embaixo das águas seu socorro é abafado e inútil.Quando os marinheiros puxam a corda, encerrando o que pensaram ser uma ameaça bem-feita de morte para calar o homem de vez, não encontram a mesma pessoa de antes. Em vez disso, se deparam com um louco gritando e delirando, balbuciando palavras e sons que nenhum deles é capaz de compreender.

Canção das ProfundezasWhere stories live. Discover now