Capítulo 6

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                                                                                            SerenaSerena não esperava que seu pedido de audiência com a rainha fosse atendido tão rápido. Mal ela tinha enviado uma mensagem através das guardas reais, já tinha obtido resposta, dizendo que Yelena está à sua espera. Ao chegar perto de Selenia, seu coração se enche de esperança. De algum modo, ela tem que colocar algum juízo na cabeça da rainha. Yara não pode ser banida. Ela errou, mas deveria haver uma forma de consertar seu erro.Depois de passar pelos portões de Selenia, Serena recebe um sinal positivo das sereias negras para ir direto aos aposentos reais. Enquanto ela nada, na forma de um pequeno peixe para sentir-se menos observada, se esforça para não reparar demais na quantidade de pedras preciosas e na forma como as pilastras esculpidas são formidáveis e lindas. Mesmo não estando debaixo da água por completo, ela pode se mover com facilidade pelos corredores parcialmente inundados.Ao adentrar o quarto de Yelena passando por debaixo da porta, Serena avista a rainha recolhida no canto do quarto, sentada sobre um arco de pedra ao fundo.O quarto da rainha é um alto cômodo que, francamente, lembra Serena do seu lugar secreto com Yara: a Enseada de Cristal. Há uma cachoeira formada com rochas que cobrem a parede do fundo e traz um ar de profundidade ao local. A água que cai da cachoeira parece vir de uma pequena abertura no teto e finda-se numa redoma de cascalhos e rochas que cerca a metade do chão do quarto. Serena logo percebe que essa água escoa para o restante do chão e continua seu curso por debaixo da porta, se conectando com as demais vias de água que circulam pelo restante de Selenia.Quando Serena entra, Yelena a encara por um instante e, fazendo uma corrente de água própria, se move erguendo-se no ar e aproxima-se dela. Enquanto Serena está se transformando outra vez em sereia, ela escuta:— O que houve? — a rainha já vai logo perguntando. — Yara se feriu?— Não — Serena diz. — Ela está bem, eu acho. Mas estou preocupada. Ela não quer ir atrás do humano. Vai aceitar o Exílio.O rosto de Yelena se contrai em susto e medo.— Mas eu dei a brecha para que ela não fosse exilada — ela rebate, quase com raiva. — O que ela está pensando?— Que não quer que o humano morra — Serena conta.— O quê? — Yelena indaga e depois fecha os olhos, se dando conta. — Ela de fato viu algo nesse humano, não foi? Não foi apenas mais uma das estranhas ações dela.— Sim — Serena concorda. — Acho que dizer que ele iria morrer a assustou um pouco.— Não tive escolha — a rainha diz. — Ela me perguntou em voz alta o que aconteceria com ele. Não podia responder na presença de todas que deixaria ele livre, é contra a lei. Se ele vir a localização de Selenia, tem que morrer.— Não, não tem — Serena interpõe. — Pode apagar suas lembranças. Você sabe que pode.Yelena suspira.— Posso, mas não será bem-visto pelas outras. Enfim, onde está Yara agora?Serena deixa escapar seu ar de tristeza e olha de novo para a rainha.— Ela disse que ia aceitar o Exílio, Yvi a viu indo para além do Fosso. É possível que ela tenha ido visitar Yubaba.O rosto da rainha se contrai em raiva e frustração. Yubaba é perigosa. Yelena sabe disso, Serena sabe disso, mas só as duas veem a profundidade da maldade da sereia de cauda negra. Yelena a baniu para longe das outras assim que se tornou rainha. Não deu explicações a ninguém, nem mesmo a Yara. Mas Serena sabe que não tinha sido à toa. Briga de irmãs, é o que as outras falam, mas foi mais do que isso. Yubaba é um desafio, e o perigo sempre a cerca.— Não podemos perder tempo então. Temos que achá-la — Yelena diz, saindo de seus aposentos e chamando por uma das guardas.— O que vai fazer? — Serena pergunta.— Chamou, Majestade? — A guarda chega, pronta para receber ordens.— Leve duas sereias com você e me traga Yubaba para uma audiência imediatamente. Quero vê-la — a rainha ordena. Serena tenta não se impressionar com a intensidade da preocupação de Yelena a respeito da proximidade das duas.— O que a está deixando tão desconfortável? — ela pergunta. Yelena manifesta seus poderes, fazendo fontes de água dançarem ao redor de si mesma. Parece ser sua forma de lidar com a ansiedade.— Quando pedi a Yara que me trouxesse o humano, pensei que ela iria imediatamente ao Mar Prateado e o chamaria com o cântico. Pensei que levasse um dia para ela observar e pedir que um humano o trouxesse, o manipulando com seus poderes. Mas não pensei...O silêncio da rainha deixa Serena mais agitada.— Não pensou o quê? — ela pergunta, aflita. Yelena não a responde. Apenas sai pelos corredores, deixando Serena para trás, preocupada. Ela não entende o motivo da preocupação absurda da rainha, mas sua recusa em responder à pergunta mostrava que Yelena tinha percebido algo preocupante no que Yara fez.Em pé, ao lado do trono de âmbar da rainha, Serena aguarda com paciência até que as guardas retornem com Yubaba. Enquanto isso, as visitas e audiências com a rainha continuam e Serena apenas as assiste. Para fazer sua presença mais confortável, ela aguarda não na forma de sereia, mas de um peixe-espada comprido, cinza, que se camufla entre as pilastras.— Vossa Majestade. — Uma sereia de cauda verde chega diante de Yelena e faz uma reverência. — É uma honra vê-la.— Qual o problema? — a rainha pergunta sem rodeios.— Tivemos um desentendimento ontem no Fosso. Duas sereias de cauda vermelha se transformaram em tubarões e...— E...? — Yelena exige o final da história.— Estão mortas, Majestade. A briga foi muito intensa.— Quantas testemunhas? — a rainha pergunta.— Dez, contando comigo. Elas não queriam que eu informasse, mas sei que morte de nossa espécie, ainda que no Fosso, deve ser devidamente notificada.A rainha tem o olhar raivoso e sério. Serena não via mais Yelena sorrir como fazia antes de ser rainha. Está mudada, de fato.— Quero quatro sereias de cauda negra guardando o Fosso a partir de hoje — a rainha diz à guarda ao lado — e vou fechá-lo por duas luas. Precisam aprender a se controlar. — Ela olha então para a sereia de cauda verde. — E você, traga-me mais duas testemunhas ainda hoje. Para que eu possa comprovar o que houve.— Sim, Majestade — ela responde e retira-se da sala do trono.Serena então se transforma de novo em sereia e se aproxima de Yelena. Não sabe dizer se a expressão de preocupação no seu rosto é por causa do que houve no Fosso ou pelo sumiço de Yara. Arriscando ser repreendida, ela abre a boca para perguntar:— Você acha que Yubaba fez alguma coisa com Yara?— Vamos descobrir — a rainha responde e em seguida duas guardas entram escoltando outra sereia para fazer uma reclamação. Serena não pode insistir contra a rainha e apenas se afasta, mas se mantém ao redor de Yelena. Ouve enquanto a nova sereia reclama que os peixes estavam começando a ficar escassos, assim como as sereias. Mais mortes. Mais brigas. Parece que não havia sobrado muitas sereias nos últimos tempos e as que sobraram estão aos poucos morrendo. Serena percebe que talvez por isso Yelena aparente tanta frieza e preocupação com tudo. Dar vida a uma nova geração de sereias depende dela agora. Um fardo que toda rainha carrega.Em algumas horas, enfim uma das guardas anuncia a chegada de Yubaba. Ela vem com a escolta, as mãos presas, o rosto passivo, mas com um sorriso cínico nos lábios, os cabelos negros soltos e uma pequena tiara feita com algas trançadas na cabeça. Ela é idêntica a Yelena. Serena não acha que haja qualquer afeto fraternal e muito menos amor entre elas, mas são de fato gêmeas do mesmo núcleo.— A que devo a honra da convocação, Majestade? — A voz de Yubaba soa irônica e cheia de ódio. Sua expressão, no entanto, é dissimulada.— Quero saber — a rainha diz em alto e bom som — se Yara foi até você?— Yara? Hum, deixe-me pensar. Ela me visitou algumas luas atrás. Era ainda menor do que é hoje. Tão jovem e cheia de vida. — Yubaba prefere brincar com a seriedade da situação.— Ela foi até você recentemente? — Yelena parece já estar perdendo a paciência.— Defina recentemente. Duas luas atrás? Uma lua atrás?Serena abre a boca para falar quando percebe que os olhos da rainha brilham violeta encarando Yubaba. De imediato, ela se dá conta de que as duas estão em algum embate mental. O rosto da rainha fica cada vez mais fechado, até que ela solta o ar e a gêmea de cauda negra faz o mesmo. Agora Yubaba aparenta estar cansada, como se tivesse estado sob tortura mental.— Yubaba — Serena chama. — Sei que Yara foi até você. Onde ela está agora?A sereia de cauda negra dá uma gargalhada.— Ah, Serena, ainda continua brincando de filha adotiva com Yelena? Achei que, depois de todos esses anos, você tinha crescido. Já não está muito velha para essas fantasias?Serena cerra os punhos e encara Yubaba com raiva. Pensa em se transformar em um tubarão enorme, talvez até em uma serpente do mar, mas alguma coisa diz a ela que Yubaba não tem medo de monstros.— O que fez com Yara? Responda ou vai enfim apodrecer debaixo do solo do oceano — a rainha ameaça.— Ela veio até mim pedindo ajuda. Não queria o Exílio, mas também não queria usar seu poder e controlar vários humanos para trazê-lo. Então eu dei a ela uma terceira opção — Yubaba conta, como se fosse divertido lembrar do ocorrido. Como se seu dia estivesse formidável e emocionante.— O que você fez? — Serena grita.— Dei a ela um pouco do seu poder, querida. Eu tinha guardado um pouquinho que roubei de uma certa cauda vermelha uma vez. Dei a Yara uma mistura. Ela absorveu e provavelmente agora já deve estar bem longe em terra firme.Serena arregala os olhos e de um instante para o outro sua boca amarga. Impossível. Yara tinha mudado para procurar o humano na superfície? Não é só perigoso, é estúpido e insensato.— Não. Ela não faria isso — Serena diz, convicta.— Não? — Yubaba fala e então olha para a rainha. — Yara não aceitaria essa chance de ir até ao mundo dos humanos?Yelena fica em silêncio de súbito, com uma expressão séria cravada em seu rosto. Serena não gosta nada disso. Encara a rainha, apreensiva, exigindo respostas com o olhar. Como não obtém nada mais do que aquele olhar temeroso da rainha, ela fala:— Ela não faria, faria? — A rainha continua pensativa, sem dizer uma só palavra. — Yelena? — Serena grita, sem se importar com desrespeito perante a soberana.— Yara sempre defendeu demais os humanos. Ela sempre foi... — A rainha, que finalmente parece tomar coragem para responder, hesita para concluir aquela verdade tão difícil de admitir. — ...atraída pelo mundo deles de alguma forma.Então é verdade. Se Yelena acredita no que diz Yubaba, então é a mais pura verdade. Yara havia deixado o mundo das sereias e foi para a superfície. Pior, foi para a terra, onde os humanos moram.— Não, não... — Serena balança a cabeça. — Vão matá-la — ela balbucia com voz fraca.— Por quê? Só porque ela está sem seus poderes? — Yubaba diz, olhando as unhas da mão e sorrindo maliciosamente.— Seu monstro! — Serena avança sobre Yubaba para atacá-la e então os olhos de Yubaba brilham, se tornando negros. Serena recua. Um encostar de caudas ou de pele faria Yubaba sugar as habilidades de Serena em um piscar de olhos.— Vai para a cela do Fosso, Yubaba — a rainha declara. As águas se agitam ao redor dela e seus olhos brilham em dourado, manifestando a sua natureza real. — E é melhor que Yara volte viva ou será sentenciada à morte por assassinar uma sereia e por usar um poder que não é seu para esse assassinato.Yubaba encara Yelena com raiva nos olhos, mas sem tirar o sorriso cínico do rosto.— Sua "filhinha" vai voltar, mas talvez ela infrinja mais algumas leis antes de se dar conta do quanto a superfície pode ser perigosa — Yubaba diz.Yelena faz um sinal para que tirem Yubaba da sua frente e ela é escoltada para fora da sala do trono. Serena começa a nadar em círculos, preocupada. Yara na superfície, sem poderes, sem ajuda. Nada poderia ser pior.— O que faremos? — ela fala. — Vão matá-la, nos odeiam. São assassinos e Yara...— Não vão matá-la — Yelena a tranquiliza. — Ela será como uma mulher extremamente atraente para eles. Além disso, segundo as guardas espiãs que enviei há algum tempo, eles não acreditam mais na nossa existência. Sem poderes, ela não vai mostrar sua natureza. Ainda assim... — Ela olha para Serena. — ...você deve ir atrás dela. Deve trazê-la de volta, pela segurança de todos.Serena engole em seco. Ir até a terra firme. Ela não está certa de que tem coragem para tanto.— Sei que é pedir muito, Serena, mas... — A rainha não completa a frase. Serena não vê como um pedido, vê como uma ordem. E uma ordem real não pode ser desobedecida. — Você pode dizer "não" se quiser. Mas, sem você, Yara corre perigo. Ela é muito jovem ainda.— Eu sei, Yelena.— Vou te conceder imunidade das leis, para que não seja julgada por isso. Só me traga Yara de volta, sã e salva.— Tudo bem.— Serena, ordeno que vá à superfície em disfarce — a rainha diz em voz alta, agora sentada no trono. — Traga a sereia fugitiva, e aproveite a oportunidade para espionar o que os humanos estão fazendo neste período. Pode ser fundamental observá-los. — Nada disso é real. Yelena apenas finge ter alguma preocupação com a movimentação dos humanos como pretexto para mandar Serena até o mundo deles. Ela só se importa com o bem de Yara. Mesmo assim, sabendo disso, Serena responde:— Sim, Majestade — e, saindo da presença da rainha, ela deixa Selenia rumo à superfície.

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