Capítulo 4

10 0 0
                                    


                                                                                        FrederickO pai de Frederick entra na taverna e dá um grande sorriso ao avistá-lo ao longe. Depois de muitos meses afastados, finalmente eles se veem outra vez. Com uma pontada de alegria no peito, Frederick deixa sua caneca de cerveja em cima do balcão e, pedindo um minuto a Hunter, sai andando na direção do pai. Ao se reencontrarem, os dois se abraçam.— Fico feliz que voltou, filho. E inteiro — seu pai diz. Seu olhar tem preocupação e alívio ao mesmo tempo, como sempre. Ele não é mais capaz de enxergar o mar da mesma forma que antes.— Claro que estou inteiro, estava com Hunter. Nenhum navio ou monstro é páreo para o Silent Mary. Talvez o kraken — Frederick responde, dando de ombros. O pai abre a boca e parece estar prestes a começar a contar histórias sobre sereias de novo. Sempre que falavam de monstros do mar, esse parecia ser o assunto. Com sorte, o capitão se aproxima dos dois antes que isso pudesse ocorrer.— Hunter! — o pai de Frederick cumprimenta o jovem caçador de monstros. — Que prazer revê-lo!— Como vai, senhor? Passou bem esses meses? — Hunter sorri de forma educada. Frederick sente-se grato pelo fato de seu amigo ser sempre simpático com o pai, e não hostil como todos os outros marinheiros. O pai de Frederick tem fama de ser louco, irritante, covarde e, ainda assim, seja pela amizade com Frederick ou por pura cortesia, ele jamais havia ofendido o pai de Frederick em sua presença.— Senti muita falta de Fred, mas sempre tenho minhas belas filhas para me fazerem companhia.— Como estão Asla e Tesla? — Frederick pergunta, percebendo que quase esqueceu das irmãs enquanto estava fora, viajando a Prada.— Estão bem. Foi por isso que vim — o pai dele continua. — Elas fizeram um jantar, querem a sua presença, filho, e a de Hunter também.As irmãs de Frederick adoram Hunter. Sempre que podem, tentam seduzi-lo ou puxar assunto com ele de alguma forma. Frederick finge não notar, afinal, Hunter não é como ele. O amigo não sente prazer em se aventurar com mulheres na arte da conquista. O capitão do Silent Mary é reservado e cuidadoso com seus relacionamentos. Somente Frederick tem a fama de dormir com muitas damas em suas viagens.— Ah, eu vou ficar e beber mais um pouco. Não devo ir — Hunter responde.— Não, não. Vai ser bom ter você, parceiro — Frederick convida. — Junte-se a nós.O amigo o encara por alguns minutos, aparentemente desconfortável. Essa era uma expressão nova em seu rosto. O caçador de monstros não costuma ficar desconfortável com muita coisa.— Vai ter ensopado de siri. Delicioso — o pai de Frederick fala, como se fosse um grande trunfo. Surpreendentemente, Hunter sorri e balança a cabeça concordando.Com um pouco de saudade de casa, Frederick desce, ao lado de Hunter e de seu pai, a rua que leva até sua antiga moradia. As ruas de Marcelle parecem tranquilas. Os arredores da cidade, porém, são sempre barulhentos e cheio de pessoas. Afinal, ela é uma cidade portuária. O único movimento constante é das diversas embarcações que circulam pela região. Por isso, as ruas são bem pavimentadas e as casas, recém-reformadas; o governador de Marcelle sempre consegue fundos para a melhoria da cidade.Assim que Frederick chega na porta de casa, a primeira coisa que vê é Asla com as mãos na testa, expressão de surpresa e olhar animado.— Tesla! Ele está aqui! — ela grita e em seguida corre na sua direção, mas não o abraça. Ela só tem olhos para Hunter. Ele, por sua vez, encara o céu estrelado com tanto atenção que faz Frederick ficar curioso por um instante sobre o que poderia ter nas alturas de tão interessante.— Sim, estou vivo ainda Asla — Frederick diz, com tom cômico na voz.— Bem-vindo de volta, irmão — ela diz. — E bem-vindo, Hunter.O capitão não diz nada, apenas olha para a garota enquanto ela fala.— Bom, não vamos ficar aqui fora, no frio — o pai dele diz, os convidando para entrar.Dentro da casa está quente. Enquanto Tesla coloca mais lenha na lareira, Frederick percebe que paira um cheiro de peixe no ar típico dos arredores desta região de Marcelle. Observa também que não houve mudanças na casa desde a última visita dele. Ele costumava morar ali até quatro anos atrás, antes de Hunter salvar sua vida e antes de seu irmão ser devorado na sua frente por uma serpente do mar. Lembra-se como se fosse ontem do terrível momento em que o imenso monstro branco com verde ergueu sua enorme boca e engoliu seu irmão mais velho, uma morte súbita e inesperada. Frederick então se juntou a Hunter para prestar serviço a ele e pagar sua dívida de honra. Mas também ansiava por distração. Algo que não o forçasse a ficar nesta casa e ver o luto de seu pai.Com silêncio e disposição, as irmãs de Frederick servem o jantar. Sobre uma enorme mesa de madeira e à luz da lareira, eles começam a comer. Ele nota que Asla e Tesla estão mais quietas que de costume; geralmente elas puxam muita conversa, em especial com Hunter.— E então, por quanto tempo vai ficar em Marcelle, meu filho? — o pai dele quebra o silêncio.— Não sabemos ainda — ele responde. — Talvez alguns dias.— Tão pouco? — ele reclama, olhando para Hunter.— Temos muita carga para entregar, pai — Frederick diz. — É provável que precisem de nós.— Bom, ao menos fique alguns dias para matar as saudades de suas irmãs — ele responde, sorrindo.Mas as irmãs de Frederick não parecem estar com saudades. Para ele, elas parecem tristes. Todos nesta casa detestam a vida em alto-mar. Aquela expressão em seus rostos é só uma forma educada de lidar com o medo.— Não se preocupe, senhor — Hunter fala. — Prometo que trarei seu filho inteiro sempre.— É uma promessa muito perigosa, meu caro Hunter — seu pai fala.— Papai! — Asla chama a atenção do velho, como se soubesse que ele está prestes a falar bobagens.— Mas é verdade! — o pai começa o discurso. — Entregar mercadorias em Prada tudo bem, mas se não tomarem cuidado podem acabar...Uma batida na porta o interrompe. Com velocidade, Tesla se levanta e dirige-se até a porta para atendê-la. Frederick aproveita o silêncio de seu pai e põe grandes porções do ensopado de siri na boca. É seu prato favorito, afinal.— Irmão, é para você e para Hunter — Tesla chama.Hunter e Frederick se levantam e chegam até a porta. Kilian e Dann estão logo à frente deles, a expressão de preocupação evidente no rosto de ambos. Por um instante, um vislumbre de ansiedade também passa na mente de Frederick. Teria acontecido algo com Silent Mary no porto? Roubado? Saqueado, talvez?— O que foi, Kilian? — o capitão pergunta sem rodeios.— O dono do banco veio até o Mary hoje depois que você saiu — Kilian conta. — Ele quer que você entregue um carregamento de ouro em Veronika depois de amanhã.— Falamos que você responderia a ele depois — Dann acrescenta.O dono do banco é a pessoa mais rica de Marcelle, o governador. Uma entrega tão valiosa quanto essa poderia render muito a Hunter — e a Frederick também. Ele fica interessado.— Obrigado por avisar, Dann — Hunter responde. — Amanhã cedo conversarei com ele.Depois de fecharem a porta, todos retornam à mesa para terminar o jantar. O capitão não aparenta estar feliz com a notícia, nem o pai de Frederick. Provavelmente porque ele já partiria de novo tão em breve.— Quantos dias até Veronika? — Frederick resolve perguntar. Ele nunca foi até lá.— Dez dias, dependendo do vento — Hunter responde.— A distância não é o problema — o pai de Frederick fala, agora com severidade. — O Mar Profundo é perigoso. São águas do kraken.— Pai, não comece...— O quê?! — O pai fica irritado. — Vai dizer que eu sou louco também? Rir de mim, como fizeram?! — ele grita.Frederick, Hunter, Asla e Tesla ficam calados diante de seu desabafo, apenas ouvindo.— Eu sei o que dizem — o homem velho continua. — Mas eu estava lá, filho, e não estou louco. Eles me amarraram e me jogaram para fora do navio. Achei que morreria afogado, mas o que veio depois foi muito pior.Ninguém ousa interromper a história, seja por medo de levar uma bronca ou por medo de irritá-lo ao ponto de ele ter um infarto.— Elas não eram peixes normais — ele prossegue. — Eram monstros.— E com o que se pareciam? — Hunter pergunta. As expressões de Frederick e de suas irmãs mostram que indignados com o fato de ele parecer interessado.— Metade peixe. Metade corpo de mulher — o pai fala. — Mas não se parecem em nada com as mulheres que conhecemos. Não pude vê-las com clareza por causa das profundezas do Fosso e da água do Mar Negro. Não sei se eram bonitas como as lendas sugerem. Pareciam mais monstros, rosnaram e me atacaram com força sobre-humana.Um longo suspirar escapa do peito de Frederick. Ele está cansado de ouvir essa história. Cansado de ter medo do mar.— Mas não vamos ao Mar Negro. Vamos a Veronika — ele diz.— O kraken vive naquelas águas! — seu pai adverte.— Ora, Hunter já foi lá mais de uma vez e nunca viu nada! — Frederick perde a paciência com o pai. Não era o que ele queria, mas não pode se controlar.— Hunter tem mais sorte que a maioria dos capitães — o pai sugere.— Ou ele é melhor que a maioria — Asla fala baixinho. Frederick a encara com severidade. Ele sabe que ela disse a verdade, ainda assim não gostou da colocação.— Vamos, Hunter — Frederick fala. — O jantar acabou. — Sem mais, sai às pressas da casa de seu pai, deixando o capitão alguns metros atrás agradecendo pela hospitalidade.Indo em direção ao porto, ele chega ao Silent Mary antes de Hunter. Já no navio, ele se senta no banco próximo à cabine de entrada e olha então para cima, percebendo que a lua está crescente. As lendas dizem que em noites de lua cheia as sereias são mais poderosas. Frederick deseja ser corajoso o suficiente para matar uma, caso a encontrassem. Ou ter ao menos a coragem necessária para enfrentar o kraken.— Não se preocupe. O kraken aparecer é muito raro — Hunter diz enquanto adentra o navio e se aproxima de Frederick.— Não estou preocupado. Você foi lá quatro vezes e nunca o viu. Quais as chances de encontrarmos com ele agora? — ele rebate.— Há chances — o capitão afirma. — Dizem que ele fica mais perto da superfície em dias de inverno. Talvez você finalmente tenha a chance de salvar minha vida como vive falando.Frederick ri. A ideia de ele conseguir lutar contra o kraken lhe soa absurda.— Talvez — ele responde. — Ou talvez acabe morto como meu irmão.O caçador de monstros se aproxima mais dele e senta-se ao seu lado, puxando outro banco.— Vai dar tudo certo — ele diz. — Mas, se não quiser ir desta vez, apenas fique. Faça companhia à sua família.Frederick pensa no assunto. Em não seguir Hunter em meio às aventuras. Em apenas ficar e viver a vida de um pescador com o pai e as irmãs. Ter uma rotina calma e sossegada com alguma garota que encontrar na taverna. A primeira que entrar e tiver um forte aroma de rosas e jasmim. Parar de pular de cama em cama de diferentes moças de diferentes cidades e sossegar em casa. Formar uma família.— Nem pensar — Frederick diz em voz alta. — Esta é uma aventura digna. Se eu for desistir, que seja depois dela.Hunter dá um meio-sorriso torto e olha para o amigo com uma expressão de aprovação.— É assim que se fala, marujo.Frederick solta uma risada e depois olha para a lua outra vez.Preparem-se, monstros. Nós estamos chegando.

Canção das ProfundezasWhere stories live. Discover now