Capítulo 3

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                                                                                            HunterO timão que controla o destino do navio começa a parecer muito mais leve nas mãos de Hunter agora. Depois de semanas viajando a Prada, finalmente em breve ele estaria de volta a Marcelle, onde poderia beber e comer alguma coisa com qualidade. Ajustando sua bússola para a direção certa, ele bate no chão do navio com o pé direito e tenta imaginar como será atracar em sua cidade preferida outra vez. É quase como se ele estivesse voltando para casa, exceto pelo fato de que sua casa de verdade lhe dá angústia e falta de ar apenas com a vaga ideia de retorno.— Capitão, Kilian está vendo algo ao longe — Frederick avisa, se aproximando com pouca sutileza e a voz exaltada, como sempre. Ele é um amigo de muitos anos, mas Hunter ainda se surpreende em como ele fica amedrontado diante da mera sombra de um possível mostro do mar.— Assuma então, Fred, vou dar uma olhada — Hunter anuncia sem nenhuma preocupação, sabendo que já está às portas do mar que cerca Marcelle. Ele vai até Kilian, o contramestre do navio. — Qual o problema?Kilian entrega a ele uma luneta e faz uma expressão de despreocupação. Hunter olha pelo instrumento e avista um movimento conhecido na água alguns metros à sua frente.— Kelpis — Kilian diz, matando a charada.— Isso mesmo. Estão muito longe e não serão problema — o capitão afirma, e em seguida volta para a ponte. O navio se move pela água com velocidade e estabilidade esperada. Tudo está na mais perfeita ordem e Hunter sabe que, se não fosse a chegada a Marcelle, seria bem entediante continuar navegando dessa maneira.— Algum perigo? — Frederick se aproxima questionando.— Estamos bem, Fred. Nada de serpentes do mar — o capitão fala e dá um sorriso e um sinal positivo para o amigo ao mesmo tempo.— Se você diz, acredito. Você é o melhor caçador de monstros, capitão — ele responde. Hunter dá uma risada e balança a cabeça.— Estamos quase em Marcelle, não devemos ter nenhum encontro inconveniente como tivemos ao norte de Prada.Frederick abre uma expressão de raiva de imediato, ficando carrancudo.— Não me lembre do norte de Prada, está bem? Tenho pesadelos com esse dia ainda — o amigo responde.É ruim admitir, mas Hunter se sente bem ao lembrar-se desse dia. Logo após sair de Prada, ele pretendia voltar a Marcelle como contramestre de um navio no qual trabalhava já havia um ano. O capitão contratou Hunter ainda adolescente e logo ele tinha subido de posto, ganhando a confiança da tripulação. Naquele dia, o navio estava zarpando para entregar um carregamento de vinhos e cervejas da melhor qualidade. O fornecedor estava esperando já havia dias e tudo que Hunter queria era receber um pagamento significante para comprar seu novo navio. Isso tinha sido há quatro anos. Prestes a zarpar, ele ouviu um murmúrio no cais. Homens sussurravam, dizendo terem visto uma enorme cobra nadando no mar mais além do norte de Prada, um pouco mais afastado do que costumavam ir. Sem pensar duas vezes, Hunter pegou um escaler e foi navegando sozinho até chegar no navio Eva.— Não tem nada do que se envergonhar, Fred — ele anuncia. — Eva era um excelente navio, você não podia ter escolhido um melhor.— Era um monte de estrume! — Fred grita. — Um atiça-serpentes. Madeira negra estúpida que atrai monstros.— Você lutou com bravura — Hunter ironiza.— Não, eu corri de um lado para o outro em pânico enquanto aquela cauda pegajosa gigante envolvia o navio do meu irmão! Você lutou com bravura. — Frederick cospe no chão e balança a cabeça, indignado com a lembrança. — Se você não tivesse entrado no navio naquele exato momento e apunhalado aquele pescoço de serpente escamoso, eu estaria morto.— Talvez só sem uma perna e um braço. — Hunter gosta de ser cômico quanto ao assunto que perturba o amigo.— Estaria sem pescoço — Frederick afirma com olhos semicerrados. — Aquela boca gigante estava indo na minha direção.— Bom, poucos podem dizer que enfrentaram uma serpente do mar e sobreviveram para contar.— Você pode, porque você a matou. Eu simplesmente tive a honra de estar presente. — O amigo é enfático ao dizer "honra".— Por isso nos últimos quatro anos tem dado a "honra" de me seguir por aí? Para me ver matando todos os monstros do mar? — Hunter pergunta, rindo e tocando o timão do navio, olhando a estibordo por qualquer sinal de perigo, por hábito.— Não. Sigo você porque temos uma dívida. Você livrou meu traseiro, e eu ainda vou livrar o seu.— Difícil acreditar — o capitão anuncia. — Tem medo até dos pobres kelpis.— São cavalos-marinhos ferozes e gigantes! — Frederick grita, se defendendo.— São pequenos se comparados à serpente — Hunter brinca. — E, além disso, eles não atacam navios, Fred. A não ser que você tente montar neles. Nunca faça isso — ele instrui com seriedade.— Tentar montar? — o amigo ri com angústia. — Eu não passo nem perto desses seres do mar. Só sigo você porque estamos em dívida.— E porque não tem outro emprego.— Empregos são superestimados — ele responde. — Mas sim, não tenho e preciso sustentar minhas irmãs e meu pai. Mas juro que um dia desses, quando salvar sua vida e pagar minha dívida, ficarei longe do mar para sempre.Hunter não consegue nem mesmo cogitar tal ideia. Para ele, o mar é não só fonte de salário e de riquezas, mas fonte de aventura e atração. Não pode nem imaginar uma vida em que ele não estivesse explorando os mares e navegando o Silent Mary pelos oceanos.— Capitão? — Frederick chama sua atenção.— O quê?— Você nunca me contou o que é que foi fazer aquele dia ao norte de Prada — o amigo diz. — O que afinal de contas estava procurando?O jovem caçador de monstros mantém sua expressão passional e misteriosa de sempre. É simplesmente impossível explicar o assunto de forma plausível. A razão para ele se sentir atraído pela luta contra monstros e aberrações do oceano tinha raízes fundas demais que ele não gostava de escavar.— Procurando aventura. Estavam dizendo no porto que havia uma serpente perto — Hunter responde.Frederick apenas balança a cabeça e bate na própria testa várias vezes, em agonia.— Um dia você ainda vai se dar mal — o amigo diz. — Sabe muito bem que existem monstros que não se pode dominar.Kilian aparece atrás de ambos e começa a rir antes mesmo de Frederick seguir com seu discurso conhecido. Ao seu lado, Dann também estava gargalhando.— Não vai falar de sereias de novo, vai? — Kilian diz em meio às risadas.— Elas são reais! — Frederick se exalta.— Seu pai é louco!— Ele viu com seus próprios olhos! Perto do Fosso!— Pode ter sido qualquer outra coisa — Dann comenta, um pouco menos agressivo que Kilian.— Não era qualquer coisa. Eram sereias! — Frederick é claro.— Hei, Fred. Calma. — Hunter coloca a mão sobre o ombro do amigo, tentando acalmá-lo. — Você já contou a história várias vezes, já sabemos.— É, sabemos que sua família é maluca — Kilian diz e em seguida o capitão o encara com um olhar de repreensão. Ele pigarreia e depois olha para o lado. — Vou checar se ainda temos pólvora suficiente para os canhões.Kilian e Dann saem ao perceber a chateação de Frederick e o olhar de desapontamento dele.— Covardes nojentos — Frederick balbucia. — Não têm coragem de acreditar no que existe além do Mar Negro. — Hunter continua procurando qualquer sinal de perigo com sua luneta enquanto escuta o amigo desabafar. — Papai também duvidou e elas opegaram bem na divisa do Fosso. Eu não tenho dúvidas de que aqueles monstros estão por aí.— Não ligue para eles — Hunter diz. — Kilian e Dann são bons homens. Leais e bons marujos também. Só que, você sabe, ninguém vê sereias há muitas décadas. Eras, até. Eu mesmo já andei desde o leste de Veronika até o norte das Ilhas de Prata e nunca vi sinal algum de...— Elas existem, Hunter — Frederick afirma. — Estão lá. Não chame meu pai de louco, como os outros.— Não disse que ele é louco — ele rebate. — Eu não acredito em sereias, mas não nego a existência delas. O mar tem muitos segredos ainda. É nisso que eu acredito.Frederick solta o ar com relutância e em seguida coloca sua mão esquerda nas costas do amigo.— Por isso te admiro, capitão. Não tem medo de nada — ele diz a Hunter.O caçador de monstros apenas sorri e avista o pôr do sol, que aconteceria em alguns minutos. A bordo do Silent Mary, eles chegariam em Marcelle quando já fosse noite.— Todos temos medo de alguma coisa, Fred — ele afirma com os olhos azuis fixos no mar. — Você tem seus pesadelos com serpentes, e eu tenho os meus.

Canção das ProfundezasWhere stories live. Discover now