CAPÍTULO 46

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Tiberius olhava a tudo tentando não surtar. Multidões o enfureciam, ele não sabia o porquê, mas estava lá, seus olhos estavam quentes. Ele não devia ter ido ver aquela tal luta, mesmo que duas mulheres lutando fosse algo que ele nunca tivesse visto.
O lugar era enorme e haviam muitos mais homens e mulheres animais que na Reserva. O ambiente era diferente, havia uma civilidade, tudo parecia planejado e até um pouco artificial na opinião dele.
A Reserva tinha um ar de liberdade, ainda que fosse murada. Era como se a gaiola fosse tão grande que você se sentisse livre, mesmo não sendo livre.
Por que eles não eram. Havia um muro e isso era o contrário de ser livre. Nenhum deles morava fora, eles saíam, mas não moravam fora. E isso os prendia.
Mas eram felizes assim, tinham casa, comida em abundância e um monte de facilidades eletrônicas, ainda que diziam que estavam mais atrasados tecnologicamente que os humanos, por que eles não eram consumistas e não viam por que comprar uma geladeira que tinha uma televisão na porta se queriam só a geladeira.
Tiberius não entendeu qual a finalidade de uma geladeira ter uma televisão na porta, mas o tal Joseph, que o autorizou a chamá-lo de Joe, afirmou que isso existia e que os humanos jogavam suas coisas fora e compravam coisas muito parecidas apenas por causa de poucos detalhes a mais.
Onde Tiberius vivia não tinha geladeira. Ele bebia água de um riacho, estava sempre fria e fresca. Ele pescava e já comia o peixe, assim como caçava e já comia a carne. Augustus às vezes levava coisas para ele, mas nem sempre dava certo, como o tal chocolate que ele comeu e vomitou durante dois dias seguidos. Tiberius ficou surpreso ao saber que haviam humanos que comiam chocolate todos os dias e não passavam mal. Entre os homens animais, a maioria comia chocolate e ficava bem, mas alguns caninos, que era como chamavam os como Tiberius, não toleravam chocolate e até outros doces. James, irmão gêmeo de Joseph, felino, outra palavra que Tiberius aprendeu, se dava muito bem com chocolates e com doces em geral. Joseph disse que havia um termo humano para James: 'chocólatra'. Joseph explicou que essa palavra tinha sido adicionada ao dicionário a poucas décadas, já que o vício em chocolate ainda estava sendo estudado.
Tiberius tinha acenado com a cabeça, mesmo sem imaginar o que seria 'dicionário'. Joseph era muito inteligente e estava sempre explicando as coisas para Tiberius. O chocólatra, James, tinha a cara muito fechada e um falso ar de malvado.
Isso era algo que Tiberius gostou muito ali. Os homens e mulheres animais daquele lugar tinham uma alma boa, pura. Tiberius se sentiu deslocado lá devido a sua parte escura.
Até que almoçou na casa de seu tio e conheceu os clones. Uma só alma dividida em duas. Uma boa, pura, tão íntegra e altruísta que Tiberius sentiu o quanto aquilo custava para Adam, o mais velho. E uma cheia de conflitos, com uma maldade escondida, aprisionada em seu âmago. Noah.
Tiberius passou o resto da tarde daquele dia tentando entendê-los. O Bom, tinha problemas em ser sempre bom, uma vez que ser bom não o livrava de fazer o mal e isso o fazia sofrer, sofrer muito, inclusive por tudo de mal que tinha feito no passado. O Malvado estava sempre tentando fazer o bem, como uma forma de se conectar, pois sua maldade o afastava das pessoas. Fazer uma maldade não o fazia sofrer, mas o sofrimento das pessoas sim.
Tiberius, naquele dia subiu num paredão de pedra e lá, entre as horas que ficou sozinho, pensando em sua vida, ele fez uma prece por seus dois primos. Ele acreditava que havia algo maior que a vida, algo criador que ouvia, ainda que não se metesse muito no plano que já estava traçado para cada um. Para Tiberius esse Algo apenas servia para ouvir as preces e fortalecer os corações que precisavam. As tristezas e angústias passavam, só se precisava de força para se passar por elas e esse Algo proporcionava isso. Não havia nada pior do que uma alma atormentada, mas seus primos eram vencedores, eles venceram o tormento, viviam uma vida boa, apesar de tudo.
Adam mesmo tinha uma família linda, uma esposa muito bonita, primata, chamada Chimes, um nome bem apropriado para ela. E ele até tinha um filhinho, um menino muito forte e inteligente chamado Collin. Pequeno Collin. Ele tinha quase três anos e era muito levado. Falante, extrovertido, estava sempre sorrindo e falando em seu padrinho, Honest, o líder dos trigêmeos. Tiberius se sentiu tão bem próximo a Adam que se ele o convidasse a morar na casa deles, ele iria.
Já Noah era simpático e todos sempre estavam falando com ele, ele sorria e Tiberius viu que ele amava muito sua família, algo à que a alma dele se agarrava firmemente, a fim de que Noah pudesse se sentir melhor. Tiberius acabou aquele dia admirando muito Noah e sua resolução em fazer o bem, mesmo que o mal o habitasse.
Outra pessoa que Tiberius admirou foi Pride. Ele, nesse exato momento, dizia para uma das lutadoras como fazer para usar sua força máxima em seus golpes, ela sorria.
Pride tinha sede de sangue que era como os homens animais dali chamavam a ânsia assassina.
Ele tinha pleno controle, seus filhos também tinham. Sheer, um forte rapaz idêntico a Pride e Proud, um menino já grandinho que se parecia muito com Pride, tirando seus olhos. Outra coisa que Tiberius nunca tinha visto eram os olhos de algumas pessoas ali. De duas cores. Os olhos do menino Proud e os de Kevin, o outro filho de Minerva com um humano, eram azuis e verdes exatamente como os de Minerva, mãe deles.
E também Wide, Silent, os filhos dos dois e o netinho de Silent, todos tinham olhos bicolores, um azul, outro castanho. Joseph explicou que ter olhos de cores diferentes se chamava heterocromia. Um nome esquisito para uma coisa bem legal. Entre ter olhos de cores diferentes e ter olhos cor de rosa, Tiberius preferia as duas cores. Todos o olhavam e achavam seus olhos esquisitos.
A luta ia começar, River, um dos filhos de Grace o puxou para o círculo que formaram em volta das duas mulheres. Uma das lutadoras era irmã dele e se chamava Harmony. Grace era prima de Tiberius, então ele tinha de torcer por Harmony, mas a outra lutadora era tão bonita que Tiberius sentiu vontade de torcer por ela.
Ele não era tão bom em ver os pensamentos dos outros como Augustus, mas acabou tentando sentir a mente dela e tudo o que sentiu era que ela pensava em um presente. O presente não estava ali, ela pensava. Tiberius não entendeu, se concentrou e ela estava com raiva do presente. Por que alguém teria raiva de um presente? Quem deu a ela esse presente?
"Alguém deu um presente a ela para lutarem? Ou ela receberá um presente por lutar?" Tiberius perguntou ao menino. Ele sorriu, ficando um pouco parecido ao pai de Tiberius. Ele se parecia com o pai dele, Torrent, mas tinha os olhos do pai de Tiberius, olhos azuis claros, que pareciam diamantes azuis.
"Ela vai perder." Ele disse. Ele estava torcendo por sua irmã, não diria algo diferente.
O líder de todos os Novas Espécies, que era o nome oficial dos homens e mulheres animais, entrou no círculo e falou algumas palavras. Houve um barulhão quando ele terminou de falar, algumas mulheres enxugaram lágrimas dos olhos, uns homens uivaram bem alto. Tiberius sentiu muita inveja deles, pois sua família não tinha a mesma sorte. Eles morreriam em algum momento, isso era certo. Bob tinha morrido e Tiberius ainda sofria por isso. Foi por isso que Tiberius entrou naquele helicóptero. Pela sua família. Honest disse que podiam ajudar e ele acreditou nele.
As duas mulheres se rodearam, Tiberius, como todos ali, estava excitado pela aura de violência que emanava delas. A loira, a linda loira, tinha os olhos na morena e Tiberius achou que ela seria quem atacaria.
"Quer apostar em alguém?" Tiberius balançou a cabeça negando, todo mundo apostava em volta dele, ele não queria desviar os olhos das duas.
Ann, a loira atacou primeiro, ela saltou de longe em Harmony, Harmony dobrou os joelhos e preparou um soco, mas Ann desviou a cabeça e acertou o olho de Harmony com muita força e saltou para trás. Harmony caiu sentada, Ann voltou a saltar e dessa vez chutou a cabeça de Harmony. Novamente Ann saltou para longe. Tiberius entendeu a intenção de Ann Sophie, ela sabia que Harmony era mais forte, sabia que se Harmony a pegasse, ela não teria força para escapar, então sua estratégia era bater e se afastar.
O chute de Ann na cabeça de Harmony foi muito forte, mesmo assim, Harmony caiu de lado, rolou e se levantou em seguida. Ela piscou, parecendo meio tonta, Ann atacou de novo, dessa vez com um forte soco no lado do corpo de Harmony. Alguém atrás de Tiberius sussurrou alguma coisa, Tiberius não conseguia tirar os olhos da luta, pois Harmony conseguiu segurar o braço de Ann e torcê-lo. Ann chiou como uma gata, um barulho bem alto, que machucou os ouvidos de Tiberius. Ela se afastou, mas seu braço estava quebrado. Era seu braço esquerdo, ela era destra, o que mostrava que ela sabia que havia o risco de Harmony lhe pegar o braço.
"Eu ainda tenho um braço e duas pernas, Mony." Ann disse com um sorriso, a multidão em volta foi a loucura. Harmony não respondeu, ela estava focada em ganhar. Tiberius sentiu que ela também procurava pelo presente. Que droga de presente seria esse?
Ann atacou de novo, dessa vez com um chute na cabeça de Harmony, Tiberius quase fechou os olhos com a violência da pancada, Harmony caiu. Ann se jogou sobre ela, prendeu um braço de Harmony com o joelho e segurou o outro braço com seu braço bom e começou a lhe dar cabeçadas, o barulho era horrível, uma cabeçada quebrou o nariz de Harmony, Tiberius quase fechou os olhos.
Harmony porém, conseguiu colocar seu pé entre os corpos delas e empurrar Ann Sophie, isso as separou. Ann Sophie se levantou, Harmony se sentou, seu rosto estava banhado em sangue. Ann voltou a chutar a cabeça dela, mas Harmony lhe pegou o pé depois de receber o chute e o torceu. O barulho do osso quebrando fez alguns machos uivarem, as mulheres que torciam por Ann chiaram.
Ann Sophie se afastou, ela mexeu no braço quebrado, mostrando que estava curado. Mas se apoiava só em uma perna. Harmony se esticou, ela era muito alta, e dessa vez ela partiu para cima de Ann Sophie. Ann a recebeu com um soco no pescoço, Harmony se afastou, Ann lhe socou entre os seios, Harmony parou de respirar e caiu de joelhos. O soco poderoso foi bem sobre o externo dela. Ann deu um soco bem na cara de Harmony, mas Harmony não caiu. Ann deu outro soco e dessa vez, Harmony virou a cabeça, a mão fechada de Ann bateu bem no meio da cabeça dela, o pulso de Ann quebrou. Ann gemeu e se afastou, Harmony se levantou e sorriu.
"Ela pode aguentar muita pancada, se Ann continuar com essa estratégia de bater e correr, vai perder." Alguém disse baixinho atrás de Tiberius.
Ann Sophie porém continuou batendo em Harmony. A perna dela já aguentava seu peso, pois ela chutou Harmony com a outra perna, um chute forte de frente, na barriga. Harmony rosnou e pareceu perder a paciência, ela foi como um touro para cima, de Ann Sophie, Ann se desviou e lhe socou o rosto bem no mesmo olho que tinha socado antes. Harmony caiu sentada e Ann lhe chutou a cabeça de novo. Harmony caiu para trás, Ann saltou para cima dela, mas Harmony a pegou pelo pescoço. Harmony girou o corpo Ann ficou por baixo e Harmony não lhe soltou o pescoço. Ann fez força para que Harmony não usasse seu peso sobre ela, Harmony usou a força que Ann fez para levantar seu corpo e o dela. Harmony ficou de pé e esticou o braço, Ann continuou presa pelo pescoço. Foi a maior demonstração de força que Tiberius viu em toda a sua vida.
"Se rende?" Harmony perguntou, Ann, ao invés de responder cravou suas garras no braço de Harmony, o sangue escorreu. Harmony porém não soltou.
"Se eu apertar mais, quebro seu pescoço, se renda!" Harmony disse.
Ann tentou chutá-la, conseguiu, mas Harmony nem se mexeu.
"Eu não vou te soltar." Harmony rosnou.
Ann não disse nada.
"Eu declaro a luta encerrada." O líder entrou no círculo. Harmony porém não soltou Ann Sophie.
"Se renda!"
"Está... Lutando... Por Gift? Reconheça isso." Ann Sophie disse baixinho, ela continuava com as garras enfiadas no braço de Harmony.
"Gift é uma pessoa?" Tiberius perguntou para River, o menino não respondeu.
Harmony soltou o pescoço de Ann e olhou a direita. Um rapaz fez que sim com a cabeça, um rapaz bonito com cabelos negros cacheados e olhos estranhos, avermelhados. Ela sorriu tristemente para ele, Ann usou a distração para uma cabeçada bem dada na testa de Harmony, ela caiu. Ann se afastou, alguém começou a contar, Ann se virou e sorriu para a mãe dela, Harmony se levantou de um salto, Ann se virou, mas Harmony se moveu muito rápido, não deu para Ann desviar do soco bem no rosto. Foi um soco tão forte que Ann foi jogada longe. Para fora do círculo.
A gritaria foi ensurdecedora, os rugidos e uivos fizeram os ouvidos dele doerem. Harmony tinha os pés bem firmes no chão, embora parecesse bem tonta. Ann Sophie se levantou e viu que tinha perdido. Ela ergueu o queixo e acenou para Harmony.
"Boa luta." Ela disse e todos aplaudiram. Ann foi até seu pai, ele a abraçou com força dizendo que ela era a campeã dele. O pai de Harmony correu até ela e a abraçou, a mãe dela chorava. Tiberius olhou para o lado e River ainda estava lá. Ele tinha um sorriso convencido no rosto.
"Você acertou." Tiberius disse.
"Eu vi." Ele deu de ombros.
"Mas foi uma luta muito boa." Ele completou com um grande sorriso.
"Tiberius?" Um homem, o chamou, ele passou por algumas pessoas até ele. Era um felino, Tiberius ainda se admirava dos olhos deles, por causa da pupila vertical, outro termo que aprendeu com Joseph.
"Eu sou Kismet." Ele disse, Tiberius sorriu.
"Oi."
"Eu sou do departamento de logística daqui, trabalho com James. Poderia me mostrar onde fica o acampamento de vocês? Há uma questão burocrática. É só um minuto." Tiberius olhou bem para o homem, ele parecia jovem. Ele não sabia o que seria uma questão buro alguma coisa, mas o rapaz trabalhava com James, o chocólatra, então devia ser importante.
Kismet começou a andar se afastando das pessoas, Tiberius foi atrás. Ele entrou num amontoado de árvores, Tiberius achou estranho, mas o seguiu. Do nada, Kismet se virou e lhe socou a cabeça, Tiberius não entendeu. Kismet lhe socou o pescoço, Tiberius não teve outra reação a não ser reagir. Ele lhe chutou a cabeça, Kismet chiou.
"Ai! Isso dói muito!" Ele disse, Tiberius ergueu as sobrancelhas.
"Por que me atacou?" Ele perguntou.
"Ele é muito forte." Kismet disse, Tiberius olhou para o lado, uma menininha estava parada ali. Ela tinha lindos cabelos lisinhos que balançaram quando ela fez que não com a cabeça.
"Você é meio inútil, Laylah." Ela disse.
"Oi? O que está acontecendo?" Tiberius alisou a cabeça, onde Kismet bateu estava doendo.
"Queremos que vá com a gente. Em silêncio." A menininha disse.
Tiberius sorriu. Ela era linda.
"Tá bom."
"Em silêncio!" Ela disse, Tiberius sorriu. Ele faria o que a menininha quisesse.
"Viu? É assim que se faz." A menininha encantadora disse para Kismet.
"Minha cabeça está doendo!" Kismet choramingou, Tiberius queria dizer que não bateria nele se ele não tivesse o atacado, mas ele não podia dizer nada, era como se tivesse esquecido como se falava.
"Bem feito!" A menininha pareceu feroz, Tiberius adorou isso.
Eles andaram até um jipe. Um humano de pele escura estava na direção.
"Foi fácil, mamãe!" A menininha disse.
Tiberius parou a frente do jipe.
"Entra." A menininha comandou, ele sorriu e entrou.
"Eu vou voltar para meu corpo, estou com uma baita dor de cabeça." Kismet disse.
"Não. Você tem de me passar pelos portões." O humano, mãe da menininha disse.
Kismet chiou, mas obedeceu.
O humano dirigiu até o portão, Kismet disse para um felino de cabelos coloridos que ia levar Tiberius para tomar sorvete, a menininha sussurrou para Tiberius o mandando sorrir para o felino. Tiberius sorriu, o portão abriu.
O humano dirigiu por um tempo, a menininha estava animada contando que tinha visto Simple e Candid. Disse também que viu a tia delas e Pequeno Slade. Tiberius queria dizer que gostou muito de Pequeno Slade, mas ele ainda não podia falar.
Do nada, o corpo de Kismet caiu no banco do jipe, a menininha disse que Laylah não tinha feito nada.
O humano parou o jipe atrás de uma loja, não era uma sorveteria. A menininha mandou Tiberius descer, ele obedeceu. Uma sombra enorme desceu sobre o beco, eram asas negras! Tiberius abriria a boca de susto se ele pudesse abrir a boca.
Não era um pássaro, era uma linda mulher alada. Ela tinha o rosto torcido como se sofresse, Tiberius achou muito estranho.
"Durma, Tiberius." A menininha mandou, Tiberius obedeceu. Talvez tudo aquilo fosse um sonho.

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