CAPÍTULO 5

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Uma semana se passou desde a gloriosa notícia da minha aprovação no vestibular da Getsemani. Neste período fiz algumas entrevistas de emprego, mesmo meus tios dizendo que não havia necessidade de eu trabalhar por enquanto, e recebi a visita dos meus pais. Eles foram embora no mesmo dia em que chegaram, mas havia sido uma sexta agradável, ainda que curta.

Minha mãe trouxera em uma caixa alguns pertences que eu havia deixado em São José; o abajur cor de rosa que tinha ganhado de um amigo do ensino médio, alguns livros e meus cadernos de composições, e meu pai carregava nas costas o meu violão.

Lívia e eu sempre fomos apaixonadas por música desde pequenas. Por intuição dos meus pais, fomos matriculadas em uma escola de música, logo cedo, chamada Dó a Si - Lívia brincava chamando a escola de "doa-se" por causa do exigente corpo docente que sugava toda criatividade possível dos alunos. O que foi interessante, pois crescemos com uma bagagem musical vantajosa.- Lá tivemos iniciação musical, técnica vocal e aulas de piano e violão.

Lívia era apaixonada por piano de cauda, eu também, mas amava mais ouví-la tocar. Parecia que o mundo parava. Ela realmente tocava com a alma. Era como se tivessem nascido um para o outro.

Apesar de toda sua paixão pelo tal instrumento de teclas brancas e pretas, Lívia tocava por hobbie; sonhava mesmo em ser jornalista, escritora; eu amava a música mais que ela, sempre sonhei em trabalhar cantando ou tocando; minha irmã só tocava à pedidos ou quando eramos convidadas a participar de algum casamento, o que nos trazia renda considerável, já que praticamente todos os sábados tínhamos algum evento do tipo.

Na hora em que vi meu violão nas costas do meu pai, minha mente voou de volta para o dia em que minha mãe, Lívia e eu fomos à loja de instrumentos comprá-lo.

Eu tinha 16 anos. Fazia uns cinco meses que Lívia e eu estávamos trabalhando em eventos, juntamente com uma equipe especialista no ramo. Fomos indicadas por um de nossos professores da escola Dó a Si. Minha irmã era altamente recomendada pela harmonia que tinha com as teclas do piano e eu por "ter a voz que todos amam ouvir", como sempre me diziam.

Certa vez decidi que precisava de um violão para poder ensaiar as minhas apresentações. O único teclado que tínhamos em casa Lívia usava para treinar as músicas que precisava tocar nos eventos. Às vezes eu conseguia emprestado o violão da escola, mas quase nunca era possível, já que os instrumentos faziam parte da didática do curso e outros alunos também tinham a necessidade de usá-los.

Eu precisava ensaiar, amava compor e queria a música como carreira; o violão seria mais que necessário para o meu aprimoramento. Me convenci que aquele era o momento certo para eu investir.

Comecei a juntar o dinheiro que recebia de todos os eventos que fazia aos finais de semana, somava com alguns trocados que meus pais me davam de vez em quando, e após seis meses, eu tinha o valor necessário para comprar meu próprio violão.

Era um sábado incrível, estava uma tarde fresca. Combinei com a minha mãe e minha irmã para que fossem comigo à loja de instrumentos. Eu já tinha feito uma pesquisa rápida, e sabia qual violão seria, o Takamine ED4NC BSB. O valor era compatível com meu orçamento de R$ 1.500,00 e ainda me sobraria um troco de R$ 300,00; estava certa de que seria ele.

Quando chegamos à loja, o vendedor nos informou que o último modelo daquele violão já havia sido vendido, mas que podíamos andar pelo estabelecimento, já que todos os instrumentos estavam em promoção. Eu fiquei arrasada. Estava certa de que sairia com meu violão em mãos. Não acreditava que haviam comprado ele. Até forcei o atendente a procurar novamente no estoque, mas a resposta dele ao voltar não havia mudado.

Lívia teve a ideia de pedir ao vendedor que nos mostrasse algum modelo igual ou melhor que o que eu almejava comprar. Ele nos apresentou alguns muito caros, totalmente fora do que podíamos pagar. Já cansadas de procurar e decididas a ir embora, estávamos prestes a sair do comércio quando Lívia notou um violão no fundo da loja, suspenso por algum prendedor na parede, e pediu ao rapaz que nos mostrasse aquele modelo. Não demorou muito o vendedor nos trouxe um excelente violão, melhor que o primeiro, modelo Takamine EG-43OS VV, e R$ 300,00 mais caro do que eu poderia pagar.

Foi amor à primeira vista. Meus olhos brilhavam por ele. Acho que Lívia percebeu que eu havia gostado, pois logo pediu ao atendente que colocasse na capa, pois seria meu, e, olhando para mim, falou:

- É seu, maninha. Eu sei o quanto você gostou dele e o quanto você o quer. Pode deixar que o valor que faltar, eu completo. Também tenho minhas economias.

Eu ainda tentei negar, não queria que ela gastasse o único dinheiro que ela havia guardado, certamente com algum objetivo, comprando um violão para mim. Mas ela não permitiu. Disse que era para o meu aniversário que estava chegando, já que eu havia gostado. Ela sempre fora assim, mão aberta. Sempre admirei muito isso nela. Eu só chorava, beijava e abraçava minha Lívia.

Bom, tempos se passaram; Lívia se foi, e com ela toda carreira musical que eu havia planejado. Estúdio para ensaios, microfones, partituras, etc; tudo me lembrava minha irmã. Eu precisava abrir mão da música e fiz isso de uma vez. Simplesmente decidi que não queria mais.

Na época ainda tínhamos alguns compromissos agendados, e a equipe, em compreensão ao meu luto que era recente, conseguiu nos substituir por outros profissionais. Mas outros três eventos, uns meses após o falecimento de Lívia, meus pais tiveram que pagar multa contratual pela minha ausência ou abandono. Confesso que foi um ano difícil para minha família.

Então, quando meu pai entregou o violão em minhas mãos, me veio tudo à tona de repente e eu chorei. A dor do luto havia voltado. Não precisei explicar o motivo para ninguém, mas quando olhei em volta, todos que estavam ali choraram comigo; meus pais, meus tios e Nic.

Assim que o relógio marcou 23h, meus pais voltaram para São José. Me despedi deles e fui direto para o quarto encontrar um lugar adequado para o meu violão ficar. Eu não tinha intenção de tocá-lo novamente, mas não o deixaria em qualquer canto, como o porão da casa antiga, onde ele esteve desde o começo do ano passado; seria uma traição com Lívia. Encontrei um lugar ao lado do guarda-roupa onde ele ficaria em pé. Um lugar estratégico para não esquecê-lo e nem lembrá-lo.

Neste dia chorei tanto que logo peguei no sono. Dormi sem jantar.

Mais duas semanas se passaram desde a visita dos meus pais, para o meu alívio, já não aguentava mais ficar em casa durante a semana, lendo os mesmos livros, ou arrumando desculpas para não visitar a igreja dos meus tios, aos finais de semana.

Acho até que eles perceberam algumas coisas, mas eu tinha me desvencilhado do assunto até aqui. Era o que importava.

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