27. A arca de Pirra

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Parado diante da gaiola da cobra, encarando aquela criatura – frequentemente mal interpretada, temida e, ainda assim, possuidora de uma beleza única

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Parado diante da gaiola da cobra, encarando aquela criatura – frequentemente mal interpretada, temida e, ainda assim, possuidora de uma beleza única. Para a maioria, símbolo de traição, veneno, ameaça que se esgueira nas sombras. E além da negatividade, um ser de sobrevivência. Seria quase hipnótico observá-la em outros contextos.

Virando para seus companheiros, o detetive enxergava o índio e a guardiã, cada um em sua jaula, encostando a cabeça nas grades, tão próximos e afastados pelas barreiras intransponíveis. Kaimbe, com os olhos fechados, parecia buscar fuga na proximidade da garota. Enquanto ela, preferia manter os olhos abertos fixando-se no chão, apoiando também a cabeça contra as barras tentando sentir o calor do homem através do metal.

A cena evocou uma estranha inveja da cobra. Pela primeira vez, Mendes desejava estar no lugar dela já que a mesma iria saborear da liberdade em breve. Era um pensamento irônico - desejar a prisão para ter a liberdade "a cabeça parece brincar com nossos sentidos e pensamentos," pensou. "Olha eu aqui, ansiando por uma gaiola, enquanto outros clamam por liberdade. Ele olhou para Kaimbe e Isadora e pensou em como, às vezes, ser livre era apenas uma ilusão e que a liberdade real estava nas gaiolas que nós mesmos escolhemos entrar.

— Me-endes — chamou Isadora. — Obrigada por ficar. Sinto muito pelo seu amigo...

Dedos invisíveis apertaram seu peito. — Eu também sinto, mas... não se preocupe. Eu sempre vou ficar por você. — Kaimbe abriu os olhos e ele corrigindo-se — ficar por vocês e... por qualquer um que precise.

A garota tentou esboçar um sorriso. E timidamente Mendes, observando-a, enquanto recebia memórias das profundezas. Viu-se de novo na festa de despedida na casa dos Castros. Lá, estava Helena, radiante, divertindo-se entre os amigos. Ele sentia um desejo intenso de se aproximar, de chamá-la para dançar, de tocar em seu cabelo, inalar o perfume que ele sabia que jamais esqueceria, e de beijá-la pela primeira e última vez.

Mas, no lugar disso, ele afastou as memórias assim como fizera na festa. Naquele momento, a distância pareceu a escolha mais segura, mais prudente. Isadora, que de alguma maneira, ocultava Helena mantendo-a simultaneamente perto e longe. E mesmo que partes de uma vivessem na outra, Isadora não ocupava seu coração.

Com um sorriso forçado que não alcançava seus olhos ele avisa que levaria a última entrega. Erguendo o recipiente de transporte simples, ele o carregou pelo corredor. No escuro, olhava para os caminhos subterrâneos, esperançoso, ainda que contra sua própria razão, de avistar Paulo. Em seu íntimo, ainda ansiava reconciliação. Mas do escuro não saiu ninguém, e na solidão, ele continuou.

Aproximando-se do "x" imaginário no fim do corredor, ele ajustou a entrega na outra mão. "Se eu morrer pelo menos já estarei embaixo da terra." Não demorou até que emergisse uma voz feminina próxima a escotilha entreaberta:

— Me trouxe o último deles?

— Si-i... Sim.

— Ótimo...! E... e você não estava com mais alguém?

O relógio de areiaWhere stories live. Discover now