5. Dia das Mães - Texto Vencedor🏆

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Iolanda batuca com os dedos no braço da cadeira de rodas. O dia está claro e quente. Raios de sol penetram pela copa do abacateiro, refletindo em seus cabelos brancos e ralos. Pipiras brincam sonoramente nos galhos da árvore. O perfume das rosas do jardim mescla-se ao aroma da malva, hortelã e quase conseguem mascarar o odor de estrume que invariavelmente cerca à propriedade. Puxa o Cachimbo de osso, acaricia-o com nostalgia, foi um presente apaixonado que a acompanha há mais de cinquenta anos. Coloca o fumo e acende a porronca. A fumaça envolve-na, há um quê de malícia em seus gestos, sabe que algúem virá ralhar com ela por estar fumando, mesmo o médico tendo proibido.

Enquanto os pulmões danificados se enchem do vapor tóxico, suspira. Pela milésima vez ri e mal-diz sua sina. Noventa anos de idade, saudável demais para morrer, doente demais para fazer qualquer coisa que não seja esperar a morte. Anastácia, caçula dos oito filhos que teve, sempre se exaspera com ela "Mamãe se você não parar de fumar vai morrer!". Normalmente ela retrucava divertida "Deus te ouça minha filha" ou "A intenção é essa" ou "Não vejo a hora". Mas desde que a filha de cinquenta e poucos anos, de cabelos brancos, roupas beatas e olhar triste, caiu em um choro convulsivo e chamou-a de egoísta, após uma de suas respostas espirituosas, Iolanda parou de responder. Limitava-se a apagar o cachimbo e assim que Anastácia virava as costas acendia novamente.

Estava entretida com a fumaça e os passarinhos. Não notou a aproximação da bisneta Nuumita.

─ Bisa ─ A moça de dezesseis anos chama baixinho.

Iolanda finge não ouvir, sua audição é perfeita; mas gosta de se fazer de surda para rir dos parentes e poder ignorar suas falas.

─ Bisa! Eu sei que você está me ouvindo! ─ A bisneta posta-se na sua frente, abanando a mão na frente do rosto para desviar do cheiro acre do fumo.

Iolanda gosta de ficar em paz com suas juntas doloridas, suas reclamações e recordações de tempos antigos. Na realidade sente-se solitária e frustrada, não é fácil para alguém que, por várias décadas foi dona de si e de seus desejos, ver-se obrigada a ser carregada, banhada e até alimentada pelos outros. "A última dignidade que me resta é poder limpar o próprio cú", diz para Anastácia, quando a filha pergunta se precisa de ajuda no banheiro.

Nunca foi muito afetuosa, acreditava que amor demais amolecia as carnes e o coração, e seus filhos precisavam ser fortes para sobreviver ao mundo. Mas amava cada um de forma visceral e única. Foi esse amor que fortaleceu-a em cada percalço de sua existência. Ainda que todos possam jurar de pé junto que jamais ouviram um "Eu te Amo" da boca da mãe.

Nos últimos anos a couraça de Iolanda, que já era quase intransponível, se tornou ainda mais densa. Não queria ser um fardo, não queria ver a tristeza nos olhos dos filhos, não queria ver a torção de nariz quando falavam com ela por obrigação e talvez se perguntassem quanto tempo de vida ainda restava para que pudessem dividir os bens que conquistou à custa de muito suor. E foi nesse ínterim, que Nuumita entrou em sua vida. Uma adolescente órfã, que perdeu os pais para a COVID e veio morar com a avó e a bisavó naquele fim de mundo. A garota tímida, de cabelo moicano e que gosta de desenhar, abriu quase à machadadas o caminho rumo ao coração da Bisavó.

Nuumita tira o cachimbo das mãos da idosa. E beija a cabeça grisalha que recende a alfazema e fumo.

─ Bisa, está na hora da nossa série.

Assistir Netflix tornou-se um ritual diário, que Iolanda aguarda com expectativa e prazer. Permite que a bisneta empurre a cadeira de rodas pelo quintal, levando-a para dentro de casa. Param em frente a Televisão, onde aparece a imagem de Tom Holland.

─ O que você está assistindo?

─ É uma série: "Entre estranhos".

─ É sobre o quê?

─ Sobre um cara que tinha um transtorno mental: Distúrbio de Personalidades Múltiplas ou Transtorno Dissociativo de Identidade. Parece que ele tinha umas catorze personalidades, algumas eram mulheres, outras crianças e algumas eram assassinas. Mas uma personalidade não sabia da outra, ou algo assim.

Iolanda faz um bico de deboche.

─ Hum. E isso existe?

─ Existe Bisa. A história é baseada em fatos reais. Ele estuprou e matou, mas parece que acabou sendo libertado.

─ Hum, é por isso que o Brasil não vai pra frente...

─ Mas bisa essa história aconteceu na década de 70, nos Estados Unidos.

Sem argumentos, Iolanda acena para que ela coloque sua série.

Enquanto Nuumita usa as setas do controle para buscar o dorama que a avó está acompanhando, surgem várias sugestões da Netflix com tema do Dia das mães. A data acontecerá no próximo domingo. A garota sente certa inquietação, nunca conversou com a bisavó sobre temas sérios. Geralmente suas conversas resumem-se a ouvir as rabugices da idosa, mas quer desabafar.

─ Bisa, posso te fazer uma pergunta?

─ Já está fazendo...

─ A senhora acha que a mamãe me amava?

A idosa salta levemente na cadeira, tentando confirmar se de fato ouviu isso.

─ De onde você tirou esse absurdo? Claro que sim!

─ É que ela nunca me disse "Eu te amo"... ─ Lágrimas correm pelo rosto da garota. Será seu primeiro dia das mães sem a presença dela.

─ Nuumita, tem coisas que não precisam ser ditas ─ Iolanda diz, recordando de cada sacrifício que precisou fazer em nome dos filhos; se isso não serve como uma declaração de amor, não sabe o que serviria.

─ Mas essa não é uma delas...

Iolanda toma o controle das mãos jovens e aperta o play pensativa. Os atores coreanos aparecem na tela, mas não consegue prestar atenção neles. Nuumita está segurando sua mão, passa o polegar levemente sobre a pele enrugada, em um carinho despreocupado.

─ Minha filha... ─ Iolanda chama.

─ Oi Bisa?

─ Você pega água pra mim, por favor?

A adolescente levanta e caminha em direção à cozinha. Iolanda reúne coragem. Chama-a à meia voz.

─ Nuumita?

─ Oi Bisa.

─ Eu te amo ─ As palavras saem estranguladas, de forma quase inaudível.

─ Não ouvi o que a senhora falou...─ Nuumita fala alto da cozinha.

─ Nada não! ─ Iolanda alteia a voz embargada.

A adolescente retorna trazendo o copo de água.

─ O que a senhora queria?

As garras do remorso comprimem o velho coração de Iolanda, mas suas amarras são mais fortes.

─ Nada não minha filha, ia só pedir para você botar gelo na minha água... ─ Toma o líquido de um gole, buscando disfarçar o marejar em seus olhos. Talvez algum dia consiga falar, mas esse dia não será hoje.

A garota cheira novamente os cabelos grisalhos.

─ Bisa, Também te amo...


Autora: Náiades Mota



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