Capítulo 1 - Você Não Devia Estar Aqui, Menino

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O espelho preso na porta do armário refletia a imagem de Ian. Segurando a camisa no alto, o menino tinha o olhar fixo em um arranhão extenso, delimitado por sangue pisado, na lateral da barriga. O calor castigava os poros e fazia o cabelo castanho, escuro e liso, grudar na testa pelo suor. O peso não ajudava: para um jovem de quinze anos, Ian estava acima das medidas saudáveis, com noventa quilos distribuídos ao longo do corpo.

Passando a mão nos fios avulsos e encharcados, jogou-os para trás, sem tirar os olhos do ferimento superficial. A mente, no entanto, vagava distante. Pensava no motivo daquilo estar lá, adornando a pele. Atracara-se com um dos meninos da escola, depois de um grupinho ter se juntado para zombar de seu corpo. Uma prática que era quase rotineira.

Mergulhado na lembrança de forma hipnótica, Ian não sentiu a camisa abandonar os dedos, tornando a esconder a barriga.

— Você não aprende, né, Leitão do Universo? – uma voz surgiu na porta do quarto, que estava aberta.

O susto bombardeou Ian.

— Há quanto tempo você está aí, Miguel? – ele perguntou ao olhar com reprovação para o irmão. Sentou na cama, ofegante.

— Que piada! Apanhou de novo?

Ian tentou respirar fundo, enfrentando a respiração acelerada.

— O que você quer, Miguel?

— Mamãe está te chamando.

— Para quê?

Sem dar a mínima importância ao irmão, Miguel virou as costas e desapareceu. Ian gastou alguns minutos para recompor o ritmo respiratório e dissolver o princípio de raiva que se estabelecera pela atitude do irmão. Quando sentiu que estava mais tranquilo, saiu, fechando a porta.

Seu quarto era simples, um anexo da garagem sem carros que ficava no primeiro andar de uma casa humilde. O garoto cruzou o espaço até uma escada que levava ao andar de cima. O fim dos degraus revelava um corredor pequeno que tangenciava a sala. Com desprazer, Ian notou um monte de papéis espalhados pelo lugar, que ele usara mais cedo para nos estudos, mas que havia esquecido. O ventilador de teto já os havia lançado longe e algumas folhas se mexiam com leve barulho. Desligou o interruptor e logo ouviu a voz de Miguel surgir:

— Está maluco? Deixa isso ligado! Não está sentindo o calor, ô imenso?

Irritado, o irmão mais novo mexia impacientemente no cabelo, que era igual ao de Ian no tom e na textura, embora atingisse os ombros.

O anúncio de confusão trouxe à porta do lado oposto uma mulher de meia idade. Usava um avental manchado de cremes frescos e coloridos por cima de uma roupa batida e casual. O cabelo castanho escuro e liso estava preso no alto da cabeça em um coque. Olhos castanhos tão claros e brilhantes quanto os de Ian e Miguel.

— O que é que está havendo aqui, eu posso saber? – perguntou Joana, limpando um resquício de pasta cremosa no avental.

— Eu estou morrendo de calor e esse Bate-teta desligou o ventilador!

— Miguel, isso é maneira de falar do seu irmão?

— É só para juntar a papelada, mãe – Ian respondeu, ignorando solenemente o mais novo.

— Junta logo!

— Por que você não vai tomar conta da sua vida?

— Ah, cala a boca.

— Miguel, você não ia tomar banho? – perguntou Joana.

— Eu já vou. Ah, mãe... – ele fez uma pausa desdenhosa, enchendo o peito de satisfação. – você sabia que o Ian se meteu em briga de novo?

Os Descendentes e a Ferida da Terra (Livro Um)Where stories live. Discover now