Passado? - Micha

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Volto à casa dos meus tios, pra saber onde minha mãe mora. Sei que ela mora em Maringá, provavelmente com a nova família. Olho algumas correspondências e por sorte o endereço exato da minha mãe está em umas delas. Não posso nem anotar. Como irei até lá? Eu não faço ideia, mas vou nem que eu precise pegar um ônibus. Estarei invisível mesmo. Sigo até a rodoviária pensando no que irei encontrar: Provavelmente ela enriqueceu já que sempre oferece dinheiro. Será que tenho irmãos? Também não faço ideia.

Entro em um ônibus, e fico de pé esperando que algum banco esteja vago. Não é por nada, mas ter alguém no mesmo espaço físico que eu por mais de sete horas, é estranho. Me acomodo. Eu acho que a minha mãe não vai hesitar em ajudar minha tia, pois ela vive de culpa, deve ser ruim mesmo saber que abandonou o filho e que o peso ficou todo pra outra pessoa, enquanto a sua situação financeira é relativamente boa.

Quanto a pensar no porquê ela foi embora, eu já desisti. Pois estou indo com um intuito: o de saber se ela realmente terá condições de ajudar. E se vai querer ao menos. Enquanto o ônibus segue na estrada, caio em pensamentos. O que será que a Juliana sonhou no dia em que eu morri? Por que será que ficou tão impressionada com o quadro? Eu me lembro de quando a minha mãe o reproduzia, eu tinha dez anos. Lembro que meu pai não tinha chego do trabalho, e era no tempo em que nem havia sinal da doença dele ainda. Minha mãe pintava em uma sala pequena no final do corredor, e sempre que eu chegava em casa, corria pra lá, pois sabia que era lá que ela estaria.

Naquele dia, ela estava com um semblante triste, mas deixava eu brincar e perguntar sobre as combinações de tinta. Lembro que seu braço estava roxo, e ela disse que era tinta, que respingou e não saia. Lembro que fiquei procurando o tom da cor no quadro e não o encontrei.

- Está com fome meu amor? - eu adorava ouvir essa pergunta, quase me perco em lembranças. Lembro que eu balançava a cabeça em afirmação, junto com um sorriso no rosto. Ela dizia:

- Eu vou fazer bolinhos de chuva. - É tão doloroso que é como se eu estivesse ouvido a sua voz. Volto ao meu redor e me levo um susto, não estou mais no ônibus.

Estou em uma sala branca enorme. Cheia de quadros e esculturas. Me espanto ao pensar que talvez tenha conseguido me teletransportar. Olho na janela e vejo que realmente é um apartamento grande e caro pra manter. Ou seja, minha mãe tem dinheiro.

Sinto o cheiro dela por toda a parte, e ando pela casa, que tem retratos meus por todos os lados. Como ela pode? Nem se importava comigo. Ouço vozes no que parece ser a cozinha. Lá está ela, tinha feito bolinhos de chuva, acompanhada de uma mulher de meia idade. Eu fico curioso. Tem fotos dessa mulher pela casa, mas não tem fotos de uma 'nova família'. Essa outra mulher é alta, tem o cabelo curto e preto. Se veste muito bem e tem uma voz concisa.

- Laura, você mesma fez esses bolinhos. Tem que comer um pouco querida. Não vai adiantar olhar pra eles. - Ela fala próxima a minha mãe.

- Ele adorava sabia? Chegava do colégio e eu sempre fazia pra ele comer. - Laura diz, encarando o prato.

A mulher avisa que irá subir, e dá um selinho em minha mãe. O que me deixa espantado. Será que por isso minha mãe fugiu? Será que moram juntas? Eu fico parado observando.

- Sabe, apesar de tudo o que o Daniel fez a mim, sinto que devo ajudá-lo, pelo Michel. - Minha mãe fala, ainda com a cara muito abatida. E eu fico confuso. O que meu pai fez? Foi ela quem foi embora e nos deixou.

- Querida, essa história já te fez muito mal. Mas se te faz sentir melhor, tenho certeza que isso fará bem pra todos. Quanto ao seu filho, agora ele sabe de tudo, de tudo. - minha mãe desaba em lágrimas se confortando nos braços da mulher com certo alívio nos olhos.

De tudo o que? Que minha mãe largou meu pai por amor a outra pessoa? Que me largou pra viver isso? Se for isso, não vejo por que ela deve se sentir aliviada, pois meu rancor ainda não passou, pelo contrário. Eu dou uma volta na casa tentando me restabelecer. Pelo menos ela quer e tem condições pra ajudar.

Eu vejo premiações por toda casa "Laura Fraccini", mestra na academia de artes do Paraná, eu vejo fotos de exposições, mas não tem um lugar sequer na casa que não tenha fotos minhas. De todas as idades. E me pergunto se foi minha tia que as enviou.

Eu sento num sofá branco na sala e fito, uma foto ainda nova dela, em que ela parecia tão viva e feliz. E ela vem da cozinha e liga a TV. Tem um filme rodando no DVD, e é do Rei Leão. Ela assiste com lágrimas nos olhos. Parece uma tortura pessoal, pois assistimos milhares de vezes quando eu era criança. E eu dizia que eu seria o Rei Leão quando crescesse.

Eu sinto meu coração doer. Apesar de toda dor que causou. Eu não quero vê-la sofrer. E decido sair dali. Já tenho a informação que preciso pra dizer a Juliana.

Reparo nas ruas de Maringá, é uma cidade bonita. Eu queria poder fazer de novo o que fiz, me teletransportar pra Curitiba. É madrugada e eu já nem sei o que pensar. Andei tanto e cheguei em um lugar chamado Gruta Nossa Senhora de Lourdes, apesar que eu já tenha rezado ou tentado entrar em contato com Deus, preciso pensar. Em tudo que eu vi e ouvi, mas na verdade eu só quero voltar pra Curitiba e dizer logo a Juliana o que falar. Eu me sento no chão e fecho os olhos. O que dizer pra aquela garota maluquinha e tagarela? E penso nisso. Quando abro os olhos me assusto.

Estou no quarto da Juliana, deve dar certo o teletransporte quando você pensa intensamente em um lugar, ou, em alguém. Ela dorme tão desajeitada. Mas com o rosto angelical. Eu não posso acorda-la agora, ela iria se assustar muito...


Penso se ela está feliz com a vida tranquila que leva, e com o namoro com o Rafa, será que ela sofreria muito se soubesse tudo o que aconteceu naquele dia? Decido ir embora, e ela se vira pra mim, a sensação de estar aqui é, estranhamente boa.

Eu te ViOnde histórias criam vida. Descubra agora