Desespero - Capítulo 14

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"Nada está perdido ou pode ser perdido. O corpo indolente, velho, friorento... As cinzas deixadas pelas chamas passadas... Elas arderão de novo."

- Walt Whitman

Uma bicicleta.

Uma velha bicicleta jogada no canto, coberta por um plástico bolorento, a mercê do tempo, do esquecimento. Milhares de outras coisas também estavam ali naquele sótão escuro, brinquedos antigos, tabuleiros de jogos, inclusive um tabuleiro Ouija, talvez eu pudesse contatar a entidade que havia transformado a minha mãe em uma vaca...

Percorri os dedos pelo guidão da bicicleta, fazia tanto tempo que eu não usava, desde que eu fora morar com minha mãe. Gustavo e eu costumávamos percorrer nosso bairro apostando corridas, percorrendo parques, fugindo de alguns drogados que se achavam os reis do bairro... Enfim, tantas memórias que estavam por ali empilhadas, empoeiradas, jogadas ao canto. Tudo parecia tão errado.

Meu ombro doeu quando eu esbarrei em um abajur velho, já havia se passado duas semanas desde o incidente com a moto, eu não precisava mais usar aquela faixa horrível no ombro, mas ele ainda reclamava com uns esbarrões. Ainda bem que eu não precisava subir mais até a janela de Caleb.

Eu sempre dava meu jeito de ver Caleb todas as noites, Victor passara a nos encobrir desde que ficássemos com a porta aberta, conversávamos a noite inteira, até Caleb cair no sono. E Cristo, como era incrível vê-lo dormindo com a cabeça no meu peito! Na escola também ficávamos juntos, Victor não tinha nenhuma objeção com nosso relacionamento.

Puxei o plástico de cima da bicicleta e o joguei para longe com violência, segurei o guidão com força e permiti que um pequeno sorriso escapasse pelos meus lábios.

Eu tinha sete anos naquele verão, era uma daquelas poucas vezes em que minha mãe me visitava quando tinha alguma folga na agência. O sol estava a pino, o vento soprava forte, era um clima bastante agradável.

- Eu vou soltar!

Olhei para trás, minha mãe empurrava a bicicleta me incentivando a pedalar sempre mais forte.

- Não! Eu vou cair.

O cansaço já estava vencendo o corpo dela, o suor escorria pela sua testa, mas a maior satisfação que eu tinha naquele dia, era o sorriso de alegria que ela exibia no rosto. Era a primeira vez que eu a via sorrir com tanta euforia.

- Você não vai cair, confie em mim – mamãe continuava a me incentivar.

Encarei a rua com mais atenção, eu ainda não estava pronto para continuar a prosseguir sozinho. Eu cairia a qualquer momento se ela me soltasse, e eu não queria mais um arranhão no joelho porque isso significava usar aqueles remédios para machucados, que deixavam a pele em volta com uma coloração estranha, além de arderem pra cassete.

- Eu não posso confiar em ninguém, vovó me ensinou isso – rebati com a minha voz de criança que tem certeza do que está falando.

E eu tinha total e absoluta certeza.

- Então confie em você mesmo – mamãe rebateu com um sorriso enigmático no rosto.

Continuei a mover os pés, sempre movendo mais rápido em direção ao fim da rua. Segurei o guidão com mais força. Eu não estava pronto. E eu me odiei naquele momento, me odiei por não estar pronto, por não ter coragem de simplesmente continuar a pedalar sozinho.

- Mamãe, eu não confio em mim – respondi com vontade de chorar.

Engoli o choro e voltei a minha atenção para a rua, pisquei várias vezes tentando adquirir coragem para deixar que ela me soltasse.

Olhos AzuisWhere stories live. Discover now