VI

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Todas as tardes, cultivando uma dessas intimidades que entre tudo o que cansa jamais cansam, Jacinto, às quatro horas, com regularidade devota, visitava Madame de Oriol: – porque essa flor de Parisianismo permanecera em Paris, mesmo depois do Grand-Prix, a desbotar na calma e no cisco da Cidade. Numa dessas tardes, porém, o telefone, ansiosamente repicado, avisou Jacinto de que a sua doce amiga jantava em Enghien com os Trèves. (Esses senhores gozavam o seu Verão à beira do lago, numa casa toda branca e vestida de rosinhas brancas que pertencia a Efraim.)

Era um Domingo silencioso, enevoado e macio, convidando às voluptuosidades da melancolia. E eu (no interesse da minha alma) sugeri a Jacinto que subíssemos à Basílica do Sacré-Couer, em construção nos altos de Montmartre.

– É uma seca, Zé Fernandes...

– Com mil demônios! Eu nunca vi a Basilica...

– Bem, bem! Vamos à Basílica, homem fatal de Noronha e Sande!

E pôr fim logo que começamos a penetrar, para além de S. Vicente de Paulo, em bairros estreitos e íngremes, duma quietação de província, com muros velhos fechando quintalejos rústicos, mulheres despenteadas cosendo à soleira das portas, carriolas desatreladas descansando diante das tascas, galinhas soltas picando o lixo, cueiros molhados secando em canas – o meu fastidioso camarada soriu àquela liberdade e singeleza das coisas.

A vitória parou em frente à larga rua de escadarias que trepa, cortando vielazinhas campestres, até à esplanada, onde, envolta em andaimes, se ergue a Basílica imensa. Em cada patamar barracas de arraial devoto, forradas de paninho vermelho, transbordavam de Imagens, Bentinhos, Crucifixos, Corações de Jesus bordados a retrós, claros molhos de Rosários. Pelos cantos, velhas agachadas resmungavam a Ave-Maria. Dois padres desciam, tomando risonhamente uma pitada. Um sino lento tilintava na doçura da tarde. E Jacinto murmurou, com agrado:

– É curioso!

Mas a Basílica em cima não nos interessou, abafada em tapumes e andaimes, toda branca e seca, de pedra muito nova, ainda sem alma. E Jacinto, pôr impulso bem Jacíntico, caminhou gulosamente para a borda do terraço, a contemplar Paris. Sob o céu cinzento, na planície cinzenta, a Cidade jazia, toda cinzenta, como uma vasta e grossa camada de caliça e telha. E na sua imobilidade e na sua mudez, algum rolo de fumo, mais tênue e ralo que o fumear dum escombro mal apagado, era todo o vestígio visível da sua vida magnífica.

Então chasqueei risonhamente o meu Príncipe. Aí estava pois a Cidade, augusta criação da Humanidade. Ei-la aí, belo Jacinto! Sobre a crosta cinzenta da Terra – uma camada de caliça, apenas mais cinzenta! No entanto ainda momentos antes a deixáramos prodigiosamente viva, cheia dum povo forte, com todos os seus poderosos órgãos funcionando, abarrotada de riqueza, resplandecente de sapiência, na triunfal plenitude do seu orgulho, como Rainha do Mundo coroada de Graça. E agora eu e o belo Jacinto trepávamos a uma colina, espreitávamos, escutávamos – e de toda a estridente e radiante Civilização da cidade não percebíamos nem um rumor nem um lampejo! E o 202, o soberbo 202, com os seus arames, os seus aparelhos, a pompa da sua Mecânica, os seus trinta mil livros? Sumido, esvaído na confusão de telha e cinza! Para este esvaecimento pois da obra humana, mal ela se contempla de cem metros de altura, arqueja o obreiro humano em tão angustioso esforço? Hem, Jacinto?... Onde estão os teus Armazéns servidos pôr três mil caixeiros? E os Bancos em que retine o ouro universal? E as Bibliotecas atulhadas com o saber dos séculos? Tudo se fundiu numa nódoa parda que suja a Terra. Aos olhos piscos de um Zé Fernandes, logo que ele suba, fumando o seu cigarro, a uma arredada colina – a sublime edificação dos Tempos não é mais que um silencioso monturo da espessura e da cor do pó final. O que será então aos olhos de Deus!

E ante estes clamores, lançados com afável malícia para espicaçar o meu Príncipe, ele murmurou, pensativo:

– Sim, é talvez tudo uma ilusão... E a Cidade a maior ilusão!

A Cidade e as Serras (1901)Where stories live. Discover now