XIV

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Ao outro dia, depois do almoço, eu e Jacinto montamos a cavalo para um grande passeio até a Flor da Malva, a saber de meu tio Adrião, e do seu furúnculo. E sentia uma curiosidade interessada, e até inquieta, de testemunhar a impressão que daria ao meu Príncipe aquela nossa prima Joaninha, que era o orgulho da nossa casa. Já nessa manhã, andando todos no jardim a escolher uma bela rosa-chá para a botoeira do meu Príncipe, a tia Vicência celebrara com tanto fervor a beleza, a graça, a caridade, e a doçura da sua sobrinha toda-amada, que eu protestei:

– Ó! tia Vicência, olhe que esses elogios todos competem apenas à virgem Maria! A tia Vicência está a cair em pecado de idolatria! O Jacinto depois vai encontrar uma criatura apenas humana, e tem um desapontamento tremendo!

E agora, trotando pela fácil estrada de Sandofim, lembrava-me aquela manhã, no 202, em que Jacinto encontrara o retrato dela no meu quarto, e lhe chamara uma lavradeirona. Com efeito, era grande e forte a Joaninha. Mas a fotografia datada do seu tempo de viço rústico, quando ela era apenas uma bela, forte e sã planta da serra. Agora entrava nos vinte e cinco, e já pensava, e sentia – e a alma que nela se formara, afinara, amaciara, e espiritualizava o seu esplendor rubicundo.

A manhã, com o céu todo purificado pela trovoada da véspera, e as terras reverdecidas e lavadas pelos chuviscos ligeiros, oferecia uma doçura luminosa, fina, fresca que tornava doce, como diz o velho Eurípedes ou o velho Sófocles, mover o corpo, e deixar a alma preguiçar, sem pressa nem cuidados. A estrada não tinha sombra, mas o sol batia muito de leve, e roçava-nos com uma carícia quase alada. O vale parecia a Jacinto, que nunca ali passara, uma pintura da Escola Francesa do século XVIII, tão graciosamente nele ondulavam as terras verdes, e com tanta paz e frescura corria o risonho Serpão, e tão afáveis e prometedores de fartura e contentamento alvejavam os casais nas verduras tenras! Os nossos cavalos caminhavam num passo pensativo, gozando também a paz da manhã adorável. E não sei, nunca soube, que plantazinhas silvestres e escondidas espalhavam um delicado aroma, que tantas vezes sentira, naquele caminho, ao começar o Outono.

– Que delicioso dia! – murmurou Jacinto. – Este caminho para a Flor da Malva é o caminho do Céu... Ó Zé Fernandes, de que é este cheirinho tão doce, tão bom?

Eu sorri, com certo pensamento:

– Não sei... É talvez já o cheiro do Céu!

Depois, parando o cavalo, apontei com o chicote para o vale:

– Olha, acolá, onde está aquela fila de olmos, e há o riacho, já são terras do tio Adrião. Tem ali um pomar, que dá os pêssegos mais deliciosos de Portugal... Hei de pedir à prima Joaninha que te mande um cesto deles. E o doce que ela faz com esses pêssegos, menino, é alguma coisa de celeste. Também lhe hei de pedir que te mande o doce. Ele ria:

– Será explorar demais a prima Joaninha.

E eu (pôr quê?) recordei e atirei ao meu Príncipe estes dois versos duma balada cavalheiresca, composta em Coimbra pelo meu pobre amigo Procópio:

– Manda-lhe um servo querido, Bem hajas dona formosa! E que lhe entregue um anel E com um anel uma rosa.

Jacinto riu alegremente:

– Zé Fernandes, seria excessivo, só pôr causa de meia dúzia de pêssegos, e dum boião de doce.

Assim ríamos, quando apareceu, à volta da estrada, o longo muro da Quinta dos Velosos, e depois a capelinha de S. José de Sandofim. E imediatamente piquei para o largo, para a taberna do Torto, pôr causa daquele vinhinho branco, que sempre, quando pôr ali a levo, a minha alma me pede. O meu Príncipe reprovou, indignado:

– Ó! Zé Fernandes, pois tu, a esta hora, depois de almoço, vais beber vinho branco?

– É um costumezinho antigo... Aqui à taberninha do Torto...Um decilitrozinho... A almazinha assim, mo pede.

A Cidade e as Serras (1901)Where stories live. Discover now