IX

392 10 2
                                    

Cedo, de madrugada, sem rumor, para não despertar o meu Jacinto, que, com as mãos cruzadas sobre o peito, dormia beatificamente na sua enxerga de granito – parti para Guiães.

Ao cabo duma semana, recolhendo uma manhã para o almoço, encontrei no corredor as minhas malas tão desejadas, que um moço do casal da Giesta trouxera num carro com "recados do sr. Pimentinha". O meu pensamento pulou para o meu Príncipe. E lancei pelo telégrafo, para Lisboa, para o Hotel Bragança, este brado alegre: – "Estás lá? Sei recuperaste Grilo e Civilização! Hurra, Abraço!" – Só depois de sete dias, ocupados numa delicada apanha de aspargos com que outrora civilizara a horta da tia Vicência, notei o silêncio de Jacinto. Num bilhete postal renovei, desenvolvi o grito amigo: – "E tornam desatento e mudo? Eu, todo aspargos! Responde, quando chegas? Tempo delicioso! 23º à sombra. E os ossos?" – Veio depois a devota romaria da Senhora da Roqueirinha. Durante a Luanova andei num corte de mato, na minha terra das Corcas. A tia Vicência vomitou, com uma indigestão de morcelas. E o silêncio do meu Príncipe era ingrato e ferrenho.

Enfim, uma tarde, voltando da Flor da Malva, de casa da minha prima Joaninha, parei em Sandofim, na venda do Manoel Rico, para beber de certo vinho branco que a minha alma conhece – e sempre pede .

Defronte, à porta do ferrador, o Severo, sobrinho do Melchior de Tormes e o mais fino alveitar da serra, picava tabaco, escarranchado num banco. Mandei encher outro quartinho: ele acariciou o pescoço da minha égua que já salvara dum esfriamento; e como eu indagasse do nosso Melchior, o Severo contou que na véspera jantara com ele em Tormes, e se abeirara também do fidalgo...

– Ora essa! Então o sr, D. Jacinto está em Tormes?

O meu espanto divertiu o Severo:

– Então V. Exª... Pois em Tormes é que ele está, há mais de cinco semanas, sem arredar! E parece que fica para a vindima, e vai lá uma grandeza!

Santíssimo nome de Deus! Ao outro dia, Domingo, depois da missa e sem me assustar com a calma que carregava, trotei alvoroçadamente para Tormes. Ao latir dos rafeiros, quando transpus o portal solarengo, a comadre do Melchior acudiu dos lados do curral, com um alguidar de lavagem encostado à cintura. – Então o sr. D. Jacinto?... O sr. D. Jacinto andava lá para baixo, com o Silvério e com o Melchior, nos campos de Freixomil...

– E o sr. Grilo, o preto?

– Há bocadinho também o enxerguei no pomar, com o francês, a apanhar limões doces...

Todas as janelas do solar rebrilhavam, com vidraças novas, bem polidas. A um canto do pátio notei baldes de cal e tigelas de tintas. Uma escada de pedreiro descansara durante o dia Santo arrimada contra o telhado. E, rente ao muro da capela, dois gatos dormiam sobre montões de palha desempacotada de caixotes consideráveis.

– Bem – pensei eu. – eis a Civilização!

Recolhi a égua, galguei a escada. Na varanda, sobre uma pilha de ripas, reluzia num raio de Sol uma banheira de zinco. Dentro encontrei todos os soalhos remendados, esfregados a carqueja. As paredes, muito caiadas, e nuas, refrigeravam como as dum convento. Um quarto, a que me levaram três portas escancaradas com franqueza serrana, era certamente o de Jacinto: a roupa pendia de cabides de pau; o leito de ferro, com coberta de fustão, encolhia timidamente a sua rigidez virginal a um canto, entre o muro e a banquinha onde de um castiçal de latão resplandecia sobre um volume do S. Quixote; no lavatório pintado de amarelo, imitando bambu, apenas cabia o jarro, a bacia, um naco gordo de sabão; e uma prateleirinha bastava ao esmerado alinho da escova, da tesoura, do pente, do espelhinho de feira, e do frasquinho de água de alfazema que eu mandara de Guiães. As três janelas, sem cortinas, contemplavam a beleza da serra, respirando um delicado e macio ar, que se perfumava nas resinas dos pinheirais, depois nas roseiras da horta. Em frente, no corredor, outro quarto repetia a mesma simplicidade. Certamente a previdência do meu Príncipe o destinara ao seu Zé Fernandes. Pendurei logo dentro, no cabide, o meu guarda-pó de lustrina.

A Cidade e as Serras (1901)Nơi câu chuyện tồn tại. Hãy khám phá bây giờ