VII

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Julho findara com uma chuva refrescante e consoladora: – e eu pensava em realizar finalmente a minha romagem às cidades da Europa, sempre retardada, através da Primavera, pelas surpresas do Mundo e da Carne. Mas, de repente, Jacinto começou a rogar e a reclamar que o seu Zé Fernandes o acompanhasse, todas as tardes, a casa de Madame de Oriol! E eu compreendi que o meu Príncipe (à maneira do divino Aquiles, que, sob a tenda, e junto da branca, insípida e dócil Briseida, nunca dispensava Pátroclo) desejava Ter, no retiro do Amor, a presença, o conforto e o socorro da amizade. Pobre Jacinto! Logo pela manhã combinava pelo telefone com Madame de Oriol essa hora de quietação e doçura. E assim encontrávamos sempre superfina Dama prevenida e solitária naquela sala da rua de Lisbonne, onde Jacinto e eu mal cabíamos, sufocávamos na confusão, entre os cestos de flores, e os outros rocalhados, e os monstros do Japão, e a galante fragilidade dos Saxes, e as peles de feras estiradas aos pés de sofás adormecedores, e os biombos de Aubusson formando alcovas favoráveis e lânguidas... Aninhada numa cadeira de bambu lacada de branco, entre almofadas aromatizadas de verbena da Índia, com um romance pousado no regaço, ela esperava o seu amigo numa certa indolência passiva e mansa que me lembrava sempre o Oriente e um Harém. Mas, pelas frescas sedinhas Pompadour, parecia também uma marquesinha de Versalhes cansada do grande século; ou então, com brocados sombrios e largos cintos cravejados, era como uma veneziana, preparada para um Doge. A minha intrusão, na intimidade daquelas tardes, não a contrariava – antes lhe trazia um vassalo novo, com dois olhos novos para a contemplar. Eu era já o seu Cher Fernandez!

E apenas descerrava os lábios avivados de vermelho, semelhantes a uma ferida fresca, e começava a chalrar – logo nos envolvia o borborinho e a murmuração de Paris. Ela só sabia chalrar sobre a sua pessoa que era o resumo da sua Classe, e sobre a sua existência que era o resumo do seu Paris: – e a sua existência, desde casada, consistira em ornar com suprema ciência o seu lindo corpo; entrar com perfeição numa sala e irradiar; remexer os estofos e conferenciar pensativamente com o grande costureiro; rolar pelo Bois pousada na sua vitória como uma imagem de cera; decotar e branquear o colo; debicar uma perna de galinhola em mesas de luxo; fender turbas ricas em bailes espessos; adormecer com a vaidade esfalfada; percorrer de manhã, tomando chocolate, os "Ecos" e as "Festas" do Fígaro; e de vez em quando murmurar para o marido – "Ah, és tu?..." Além disso, ao lusco-fusco, num sofá, alguns curtos suspiros, entre os braços de alguém a quem era constante. Ao meu Príncipe, nesse ano, pertencia o sofá. E todos estes deveres de Cidade e de Casta os cumpria sorrindo. Tanto sorria, desde casada, que já duas pregas lhe vincavam os cantos dos beiços, indelevelmente. Mas nem na alma, nem na pele, mostrava outras máculas de fadiga. A sua Agenda de Visitas continha mil e trezentos nomes, todos no Nobiliário. Através, porém, desta fulgurante sociabilidade arranjara no cérebro (onde decerto penetrara o pó de arroz que desde o colégio acamava na testa) algumas Idéias Gerais. Em Política era pelos Príncipes; e todos os outros "horrores", a República, o Socialismo, a Democracia que se não lava, os sacudia risonhamente, com um bater de leque. Na Semana Santa juntava às rendas do chapéu a Coroa amarga dos espinhos – pôr serem esses, para gente bem-nascida, dias de penitência e de dor. E, diante de todo o Livro ou de todo o Quadro, sentia a emoção e formulava finamente o juízo, que no seu Mundo, e nessa Semana, fosse elegante formular e sentir. Tinha trinta anos. Nunca se embaraçara nos tormentos duma paixão. Marcava, com rígida regularidade, todas as suas despesas num Livro de Contas encadernado em pelúcia verde-mar. A sua religião íntima (e mais genuína do que a outra, que a levava todos os domingos à missa de S. Felipe du Roule) era a Ordem. No Inverno, logo que na amável cidade começavam a morrer de frio, debaixo das pontes, criancinhas sem abrigo – ela preparava com comovido cuidado os seus vestidos de patinagem. E preparava também os de Caridade – porque era boa, e concorria para Bazares, Concertos e Tômbolas, quando fossem patrocinados pelas Duquesas do seu "rancho". Depois, na Primavera, muito metodicamente, regateando, vendia a uma adela os vestidos e as capas de Inverno. Paris admirava nela uma suprema flor de Parisianismo.

A Cidade e as Serras (1901)Waar verhalen tot leven komen. Ontdek het nu