Capítulo 1

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"Como doem as perdas para sempre perdidas, e portanto irremediáveis, transformadas em memórias iguais pequenos paraísos-perdidos." 

 Caio Fernando Abreu.


 Com um suspiro, colocou a mão para fora do carro para sentir a chuva. Sorriu consigo mesma, e pensou por um breve momento que ele poderia ter se diluído em água e agora tocava palma de sua mão. Voltou com a mão para dentro do carro e ficou analisando a mão molhada. Apertou a mão, como se quisesse guardar aquela água ali para sempre. Cravou as unhas na palma da mão, a ponto de fazer várias meias luas, tamanha a força que utilizou.

Haviam se passado dois dias desde que ele morrera e ela ainda pensava que tudo não passava de uma grande brincadeira e ele a reencontraria assim que chegasse em casa. No entanto, tinham dois problemas: 1) não ia mais voltar para casa porque os seus pais, exageradamente, segundo ela, não achavam saudável ela continuar naquela cidade e estavam se mudando para o Rio de Janeiro. E, 2) ele havia morrido de fato, não era uma brincadeira.

Ela riu, amarga.

Os pais interromperam a conversa e olharam para ela. Um olhar que ela não sabia muito bem definir, um misto de pena, com frustração e impotência. Aquilo chegava a embrulhar o estômago, estavam olhando-a assim desde que souberam do acontecido e têm ficado silentes desde então. Ela emergiu em tamanha tristeza que permaneceu alheia a qualquer tipo de contato humano por pelo menos 24 horas. Era como se estivesse numa espécie de cápsula, que a impossibilitava de falar ou ouvir. A mãe chegou perto dela duas ou três vezes no fatídico dia do acidente, mas não conseguiu arrancar muita coisa dela. A sua filha encarava o completo vazio e não parecia incomodada com isso, imersa nas próprias lembranças.

"Cecília", a mãe a chamou.

Imediatamente, saiu do estado pensativo que se encontrava e encarou a mãe.

"Sim"

"Por que você riu, minha filha?" Falou de modo maternal, mas como se falasse com uma espécie de lunática.

"Pensei numa piada que li na internet mais cedo" e sorriu em seguida. Um sorriso estrangulado. Qualquer um perceberia que estava mentindo, ele perceberia que estava mentindo. Só que ele não estava mais lá.

"Ah, sim. Bom. Acho que isso é uma coisa boa, depois de tudo. Você vai gostar bastante do Rio de Janeiro, Ciça. Eu morei lá durante minha infância e adolescência, como você sabe, e tenho ótimas lembranças. É realmente uma cidade maravilhosa." A mãe tentava animá-la e lançou-lhe um daqueles olhares que faziam com que Cecília se sentisse a filha mais amada do mundo. E um tanto sufocada.

"Mal posso esperar", murmurou e virou-se para a janela novamente, não de mau humor, mas apenas contemplativa.

Não faria diferença estar no Rio ou em São Paulo. Ou no Japão. Sofreria do mesmo jeito, o sofrimento era seu novo endereço, era onde ela se abrigaria dali por diante. Por que ele tinha que morrer? Por que, dentre todas as pessoas? É claro que às vezes ela secretamente pensava na ideia de morte, de uma maneira sedutora. Não como se quisesse morrer, claro que não, mas apenas como as pessoas reagiriam se ela fosse. Dizia que não precisava de ninguém além dela mesma, era quieta, mas era tão amorosa e carente como qualquer um. Gostava de se sentir amada e querida pelas pessoas, pertencente a algum lugar.

Quando conheceu Lucas pensou que aquela ideia de morte era ainda mais sedutora. Como ele reagiria se ela morresse? Claramente ia ficar bem triste. Ia se fechar para o mundo, talvez? Ia ficar um bom tempo sem namorar ninguém, ou talvez para sempre. Ela sempre ria consigo mesma, triunfante, quando chegava a esse brilhante raciocínio. Dizia que não era ciumenta mas era tentadora a ideia de tê-lo só para ela, de ele não conseguir amar mais ninguém além dela.

Em seguida, o pensamento fúnebre se afastava de sua mente por alguma distração. Ou uma mensagem de Lucas ou de alguma pessoa próxima. E é claro que o pensamento fúnebre se afastaria, tinham apenas 20 anos. É verdade que tem algumas pessoas que morrem aos 20, e até mais jovens, mas ela preferia pensar na ideia da boa e velha morte natural, por velhice.

E então...

Ela estremece só de lembrar.

Os olhos se enchem d'água, e ela sente uma espécie de queimação nos pulmões.

Conceber o mundo sem Lucas era... inconcebível. Sim, era redundante. Ela se sentia redundante, ou fazendo parte de uma espécie de piada. Não era possível... aquela tristeza que tomava-lhe o peito, aquela dor aguda que não era física, uma dor dentro dos órgãos que ela não sabia explicar. Cada fibra de seu ser doía.

Viver sem o Lucas era triste demais, silencioso demais. Ela não merecia passar por essa desgraça com apenas 20 anos. No entanto... estava ali, na sua frente, acontecendo. O tipo de desgraça que só vemos pela tevê, nos filmes e séries. Ficamos tristes pelo personagem, choramos junto. Ficamos emocionados, temos até um momento catártico. E aí, desligamos a tevê. E a vida volta a ser boa de novo.

O único problema era que esse momento estava ali, acontecendo com ela. Uma pessoa que sempre pensou na morte mas não de forma fúnebre, apenas como parte da vida. E também uma espécie de tira-teima com as pessoas que convivia. Quem será que lamentaria sua morte? Os amigos, os pais... ou será que teria algum admirador secreto que ficaria destroçado com tal revelação?

Lucas costumava dizer que ela vivia dois mundos. O mundo das histórias e o mundo real. E ela vivia confundindo um com o outro, não sabendo, ele mesmo, se ela não se confundia às vezes e achava que era uma espécie de personagem de romance ruim. Ela era dotada de uma crença no amor um tanto anormal, para os dias atuais. Ou para a vida real. Acreditava em grandes gestos românticos, em arrebatamento, em amor a primeira vista. Em toda essa bobagem que atualmente fazem as pessoas venderem livros e filmes de comédia romântica, segundo ele.

Ele dizia que ela vivia em suas histórias mas nunca, nem por um milésimo de segundo, a repreendia seriamente por tal comportamento fantasioso. Debochava dela sempre que possível, e fingia uma espécie de irritação quando ela agia como uma princesa perdida de filme brega. No entanto, a bem da verdade, ele amava seu jeito. Cada parte dele. E ela sabia. E sorria consigo mesma por ter, finalmente, encontrado alguém para ser totalmente quem ela era. Com todas as maluquices inclusas.

Ela se lembrou, com doçura, das vezes que o pegava admirando-a pelo canto dos olhos. Como nos livros de amor que ela lia. Claro, já havia lido sobre a admiração masculina por uma mulher, mas senti-la pessoalmente era... encantador. Ele a olhava de canto de olho e quando ela o encarou de volta, ele simplesmente olhou o teto. Homens. Por que era tão difícil assumir que estava perdidamente apaixonado? Que ela era o amor de sua vida? Que não conseguiria viver sem ela?

De uma coisa, ela nunca se arrependeria: tinha dito todas as vezes que podia que o amava. Que ele era o amor de sua vida, que era o seu melhor amigo. E toda essa bobagem de livros que ela amava. Era uma bobagem, segundo ele, é claro. Ela o olhava com intensidade, e ele olhava para o lado. Ele a amava, sim, mas não conseguia demonstrá-lo tão abertamente. Ele achava que o momento era demasiado intenso e tentava quebrar o gelo, fazendo uma piada ou sorrindo. Dizia que a amava de volta, sim, mas com mais leveza. Coisa que Cecília nunca teve. E era o que ela mais amava nele, apesar de sentir-se frustrada algumas vezes por ele não respondê-la com tanta intensidade.

Lucas demonstrava seu amor de forma menos óbvia. Um dia, como quem não quer nada, depois do amor, a abraçava e dizia ser o homem mais feliz do mundo. Ela sorria. Então, era daquele jeito que ele dizia que a amava. E todas as vezes que ela precisou dele, ele estava lá. Todas. Não excepcionava uma. Era o seu melhor amigo, aliás, era seu lucas. Ao invés de namorado, melhor amigo ou qualquer substantivo. Ele era tão precioso para ela que recusava-se a encaixá-lo em namorado, melhor amigo ou ambos. Ele merecia mais, ele merecia uma categoria somente dele. Ele era seu lucas. E isso já dizia muita coisa.

"Chegamos, filha."

Ela olhou para fora do carro.

Era uma espécie de recomeço, como gostava de falar sua mãe. E ela ia tentar se adaptar. Mesmo carregando aquele peso sobre os ombros, os pais não mereciam dividir aquele fardo, portanto, esforçara-se com esmero para esboçar alguma sombra de sorriso.

"Vou ajudar a pegar as malas", disse por fim, colocando o pé no asfalto molhado após uma chuva torrencial. 

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