Capítulo 3

81 6 1
                                    


CECÍLIA NARRANDO

"Essa, meu filho, é a Cecília, vocês não se conheceram por... bom, circunstâncias da vida, mas ela vai passar um tempo conosco" disse tia Beth, sorrindo.

"Espero que ela colabore com a despesa da casa e não sirva só pra comer e ser uma parasita" disse o rapaz, sentando-se, e olhando me olhando da cabeça aos pés.

Quem aquele retardado pensava que era? Como a amável e doce tia Beth colocou no mundo um brutamontes grotesco daqueles?! Realmente, essa era uma pergunta que não podia falar. Dando seu melhor falso sorriso, Cecília o encarou.

"Fique tranquilo, meus pais vão ajudar mensalmente enquanto moro com vocês. Se achar que estou incomodando, ficarei mais do que feliz em procurar outro lugar, onde eu certamente poderia selecionar melhor as pessoas que me rodeassem".

Ele me encarou, surpreso pela resposta, mas controlou muito bem suas emoções com um sorriso malicioso.
O silêncio estava tão pesado que poderia ser cortado com uma faca, se alguém se atrevesse.
Rapidamente, tia Beth tentou remediar o terrível comportamento do filho:
"Que é isso, minha querida. Estamos mais do que felizes de você estar aqui conosco. Não deve ir pra nenhum outro lugar, seu lugar é com sua família."

Enquanto eu me servia de um pouco de arroz, e o rapaz se servia de frango, o silêncio voltou a ser constrangedor.
A mãe de Gustavo estava chutando-o por debaixo da mesa, com os olhos arregalados e apontando para mim, dizendo algo que não consegui ouvir, pois era muito baixo.
Ele deu um suspiro forte, resignado.

"Peço que me desculpe pelo meu comportamento, Cecília. Não estou acostumado a receber visitas aqui."

"Tudo bem." Respondi, secamente.

E o encarei novamente.
Sem a raiva borbulhando dentro de mim, pude observá-lo melhor. Tinha os cabelos negros e baixos. E os olhos mais estranhos que já vi, olhos... como os de Lucas, grandes e cor de avelã. E a pontada voltou a tomar conta de seu coração. E a dor.
Gustavo olhou pra mim e não entendeu nada, lógico. Acho que ele não sabia de nada.
"Por que você veio de São Paulo para cá, Cecília? Meio longe né, mas me conta aí porq...AI!"
Tia Beth tinha acabado de chutar o filho por debaixo da mesa. Deve ter doído, pelo visto.
Ri baixinho, me esquecendo por um segundo da dor no coração, que pulsava.
"Ela não quer falar sobre isso, não é... querida?" Disse tia Beth, amigavelmente.

Pensei por um segundo.
Falar de Lucas ainda doía, mas queria fazer Gustavo se sentir mal por ter sido um grosso comigo. Pela vingança, valia a pena vê-lo chocado.
"Tudo bem, tia. Então, Gustavo, estou aqui porque meu namorado faleceu. Meus pais estão com medo que eu enlouqueça ou entre em uma espécie de depressão, então acharam que era uma boa alternativa passar um tempo com vocês."
O silêncio pesou novamente.
Gustavo me olhou com uma espécie de dor, que eu não saberia decifrar. Eu pensei que fosse constrangê-lo, mas na verdade eu é que me senti constrangida por ter dado um golpe tão baixo usando Lucas para fazê-lo se sentir mal. Lucas não merecia isso.

"Eu... eu sinto muito"

Foi só o que ele conseguiu dizer o resto da noite, comendo com uma espécie de feição de dor no rosto.
Levantou da mesa e lavou seu prato. Fiz o mesmo ao lado dele, silenciosamente.
Ele lavava, e eu enxugava.
Tia Beth foi para o quarto e estávamos sozinhos na cozinha. O silêncio pesava ainda, mas eu não tinha a menor intenção de quebrá-lo.
Pelo visto, nem ele.
Observei ele de canto de olho. Era alto, com porte atlético e usava uma camisa dos Foo Fighters. Gostava também, claro, mas preferia meu bom e velho jazz ou MPB. Achava rock um tanto enérgico demais, e, admitindo minha ignorância, um pouco de gritos demais pro meu gosto.
"Vai estudar onde aqui?" Ele perguntou baixinho.
"Acho que é no colégio Intellectus, algo assim."
"Ah, legal. Você vai estudar no mesmo colégio que eu. Qual sua série?"
"Bom, eu já terminei o ensino médio ano passado. Creio que meus pais me matricularam na turma de pré vestibular somente, e você?"

"Ah, eu também. Terminei ano passado."
"Caramba, com 17 anos? Você está adiantado."
"É, pode-se dizer que sim."
E ele sorriu, tentando ser simpático.
Terminamos de lavar a louça e subi para meu quarto.
Observei que ele me seguia atrás e só então me dei conta que nossos quartos ficavam um ao lado do outro.
"Então... boa noite. E te peço que me desculpe de novo. Eu realmente não sabia..."
Meu coração doeu novamente.
Fiz um aceno de cabeça e disse:
"Tudo bem, Gustavo. Acontece. Sei que não fez por mal."
E dei um sorriso fraco.
Ele me olhou visivelmente com pena e eu senti a raiva dentro de mim borbulhar novamente.
Dei as costas e fui pro meu quarto e fechei a porta. Um tanto abrupta.
Sentei na cama.
Era um quarto simples, com as paredes creme e os móveis de mogno.
Era bem impessoal, como um quarto de hóspedes deveria ser.
Olhei para minha mala e a abri.
Sentei na escrivaninha próximo a cama e peguei meu caderninho que estava bem na parte de cima da mala.
O abri.
E comecei a escrever.

Querido Lucas,

E parei. Não conseguia ir além disso.
A psicóloga disse que fazia bem escrever para as pessoas que já se foram pois nos dá a sensação de desfecho. Tipo uma carta de despedida.
Fazia um mês que ele se foi aproximadamente, e eu não conseguia ir além dessa parte.
Eu não queria um desfecho.
Queria ele ao meu lado, acariciando meus cabelos.
Uma lágrima teimosa desceu pelo meu rosto.
Por que era tão difícil assim se despedir?

Amor,Where stories live. Discover now