Capítulo 2

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"Sou hoje um caçador de achadouros da infância.

Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos." 

Manoel de Barros 


Sua mãe apertou a campainha do grande casarão, que fez um barulho estridente, contrastando com a quietude do lugar.

"Irmã, sou eu!"

"Descendo!" Dizia uma voz mais estridente que a campainha, em resposta.

Depois de pegar as malas, Cecília deu uma boa olhada ao redor. Estavam em Petrópolis, segundo sua mãe. Era Rio de Janeiro ainda, mas conservava o charme de um lugar mais bucólico e afastado. Ao longo do caminho, ela imaginou dezenas de lugares: pensou numa roça, pensou num lugar feio e sujo ou caindo aos pedaços. Afinal, foi ali que a mãe passou a infância e adolescência, e, depois que os pais dela morreram, quem passou a morar ali foi sua tia Beth.

Tia Beth.

Guardava pouquíssimas lembranças daquela estranha senhora, além das poucas vezes que ela a visitava, na infância, e levava muitos doces e ótimas histórias. Era uma mulher afável, mas muito diferente de sua mãe, que sempre tinha uma moral muito estrita e sempre foi mais na dela. Sentiu até uma pontada de falta daquele tempo, mas se lembrou que ela se afastou porque se casou e teve um filho. O homem, segundo sua mãe, era um tipo intragável e machista, que não a deixava sair para lugar algum e muito menos visitar parentes. Então, depois de 8 anos desse casamento horrível (um cárcere privado, pelo amor de Deus!), o homem veio a falecer num súbito ataque do coração.

Foi um alívio para toda a família, mas principalmente para sua mãe, Lúcia. Apesar de ser do tipo calada e um tanto tensa com a vida, a mãe de Cecília tinha um coração bondoso e afável. Ninguém quer que a irmã sofra em um casamento infeliz. No entanto, tia Beth, apesar de ter se livrado daquele ser abominável, nunca mais retornou ao seio familiar como fazia outrora. Nunca mais participou de nenhuma reunião familiar e se isolou do mundo, ligando vez ou outra para perguntar como estavam todos, mas não mais que isso.

Cecília acreditava que a única coisa que faria Beth sair do autoexílio seria uma tragédia. E, bom, ela acreditava que o que estava acontecendo com ela era uma tragédia, afinal, e sua mãe devia estar um tanto desesperada para ajudar a filha, uma vez que em todos esses anos nunca procurara a irmã pessoalmente. Provavelmente por resignação, sua mãe nunca era boa em tomar os primeiros passos das coisas. Cecília via isso a vida inteira, parecia que a mãe nunca tinha opinião alguma, apenas sendo "empurrada" pela vida e foi por isso que quando cresceu e entendeu um pouco melhor as coisas, prometeu a si mesma que sempre teria opinião sobre algo e nunca apenas "aceitaria" o que o mundo a oferecesse.

Saiu da casa uma mulher baixinha, com cabelos loiros escuros encaracolados e gordinha. Tia Beth era exatamente como ela se lembrava, exceto pelos fios grisalhos que furtivamente apareciam entre os fios loiros. Outra coisa, também, chamava a atenção de Cecília: os lábios sorriam, abertamente, mas os olhos desmentiam o que a boca falava, em uma expressão triste e... vazia. Um calafrio percorreu a espinha nesse momento. Era uma expressão tão triste... como se os olhos, de um azul cinzento, estivessem mais cinzas ainda.

"Vocês!" Dizia tia Beth com os braços abertos, descendo a pequena escada da varanda.

"Não acredito que estão aqui! Irmã!"

E deu um abraço tão forte na irmã que parecia que as costas de Lúcia tinham estalado. Alto.

"E a minha pequena Ciça! Que mulher linda você se tornou! Gustavo vai adorar te ver de novo, também já é um rapaz! Tem 18 já, acreditam?" Disse a simpática mulher, com um sorriso que poderia aquecer o mundo num abraço. Mas os olhos, por algum motivo, não conseguiam acompanhar aquele sorriso.

Cecília sorriu, desconcertada. Um sorriso triste, de fato, mas não poderia não ser afável com sua amada tia Beth que, apesar da distância, nunca esquecia de mandar a ela algum dinheiro de natal e, mais importante, guloseimas.

"Oi, Luiz! Desculpe não ter falado com você, mas realmente é emocionante encontrar essas duas meninas"

"Oh, claro, Beth. Eu entendo." E deram um breve abraço.

Cecília franziu o cenho.

O pai e a mãe eram pessoas frias e emocionalmente distantes, apesar de tentarem ao máximo passar amor. Mas Cecília sabia. Não eram pessoas com tanta amabilidade assim, pessoas que amavam de modo simples.

"Entrem, entrem, por favor."

Ao adentrar a sala do grande casarão, Cecília se deparou com uma elegante sala decorada com muitas flores. Os móveis em mogno sugeriam que se tratava de uma casa antiga, mas muito bem conservada. Não cheirava a mofo como a maioria das casas antigas, mas dava pra perceber que o lugar abrigou muitas lembranças.

As boas e as más.

Ela e os pais se sentaram em um sofá bege claramente novo, conversaram brevemente (mas não sobre o que aconteceu com Lucas) e, quando se deram conta, os pais de Cecília já estavam na varanda se despedindo.

"Estamos fazendo isso pro seu bem, sabe disso. Eu queria muito ficar, mas o meu trabalho e o do seu pai não nos permite ficarmos afastados por tanto tempo já que tudo foi tão repentino e não pudemos pedir licença e... mas eu acredito que uma temporada aqui vai te fazer muito bem" disse Lúcia, abraçando a filha desajeitadamente e subitamente, talvez para parar de falar sobre o que estava falando.

"Filhota, você sabe que pode me ligar a qualquer momento, do dia ou da noite. Não importa, sabe que dormir é superestimado."disse o pai, dando uma piscadela cúmplice.

De fato, o pai era neurocirurgião, poucas vezes o via dormindo. Um dos seus momentos favoritos era quando descia para buscar água e via o pai no escritório, estudando. Sempre era tomada por um sentimento de cuidado que não era de sua natureza, e acabava fazendo café e levando pra ele. Varavam noites e noites discutindo os casos difíceis que o pai estava lidando, e acabavam esbarrando pelos assuntos da vida mesmo. O pai foi a primeira pessoa para quem Cecília disse que tinha se apaixonado, ele era um tanto distante, sim, mas era seu melhor amigo.

Talvez tenha surgido dele a vontade de fazer medicina.

Talvez essa vontade tenha sido exacerbada depois da morte de Lucas.

"Mãe, pai... não precisam se preocupar. Farei o possível para tia Beth não se preocupar comigo." Disse, do modo mais tranquilo que pôde.

"Eu sei que esse pareceu ser o fim, minha filha. Mas acredite, é apenas o começo. De uma linda vida." Disse o pai, colocando uma mecha de cabelo teimosa atrás de sua orelha.

Em seguida, beijou sua testa e foi embora no carro em que a trouxeram. Dessa vez, sem ela.

Depois desse momento de emoção, Cecília voltou-se para a casa.

"Você deve estar com fome, não?" Disse tia Beth, sendo a própria definição de simpatia e amabilidade.

"Um pouco." Confessou, colocando as mãos na barriga que roncava e dando um sorriso amarelo.

"Sente-se, o jantar já está pronto. Vou só chamar o Gus. Ele deve estar faminto também!"

Cecília sentou-se e aguardou a mulher ir até o quarto do filho chamá-lo, mas ao invés disso:

"GUUUUUUUUUUUUUUS! JANTAR!"

Cecília não pôde evitar colocar as mãos nas orelhas tamanha a altura que aquela mulher gritara. Podia ser soprano, sem dúvidas.

"Oh, querida. Desculpe. Como aqui a casa é muito grande, eu preciso gritar para que ele me ouça, mas estou pensando seriament em comprar um sininho para que ele me escute melhor." Disse tia Beth, dando um risinho.

"Mãe, quantas vezes eu pedi pra você não me chamar por essa porra de apelido ridículo? É Gustavo, pô."

Um rapaz extremamente alto disse, enquanto adentrava a sala de jantar.

"E essa aí, é quem?" Disse ele, com um sorriso debochado.



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