DOIS

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A maioria das pessoas que desfrutam o jantar servido nesse ambiente não possuem a mínima ideia de como ele fora preparado. Não me refiro, somente a construção do prato, — os ingredientes adicionados à receita principal — mas sim a todo o ambiente que é a cozinha de um grande restaurante.

            A atmosfera é hostil e não é permitido errar. As cobranças são constantes e os atritos permanentes. Entre pratos e panelas, não sobra espaço para amenidades, somos escravos do alimento. Ele é o astro principal e a cada pedido que nos chega temos que fazer o melhor. Sempre o melhor.

            É quase uma orquestra. A faca que desliza sobre a peça de picanha soa como acordes de uma canção, o triturador de grãos é a nossa bateria, o tilintar do garfo, o bater das claras em neve e o som de refogar de verduras compõem a sinfonia que é da cozinha em ação. O chef é o maestro, não podemos desafinar.

            Seria piegas dizer que esse turbilhão de sons soa como música para os meus ouvidos? É a mais pura verdade. É nesse ambiente árido, repleto de sons e sabores, que eu me sinto completa.

            Cozinhar é minha paixão. Meu tesão constante é testar ingredientes e criar receitas. Minha maior fantasia é levar o outro ao orgasmo gustativo, com a mistura de sabores e texturas. É o que me faz sorrir mesmo em um dia de caos como o de hoje: sábado à noite.

            Como diria Lulu Santos "Todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite" e nos restaurantes não é diferente. É o dia de maior movimento, no qual os casais celebram noivados, amigos se reencontram e empresários ricos comemoram mais alguns dígitos em suas contas. E nós, reles mortais, trabalhamos arduamente enquanto eles se divertem.

            Hoje é o meu último dia como chef e nessa curta experiência de três semanas eu apenas confirmei o meu amor pelo ofício. Não me vejo em nenhum lugar que não seja uma cozinha e se isso implicar em passar anos como uma auxiliar, farei isso com um enorme sorriso no rosto, pois sei que um dia terei meu próprio restaurante e quando esse dia chegar serei a mulher mais realizada do planeta.

            — Pessoal, último prato da noite já saiu! Vamos começar a organizar as coisas e depois casa! — Informei e recebi o habitual "Sim,chef" como resposta.

            Das vantagens de ser chef está em poder sentar por alguns minutos. Enquanto uma parte da equipe já começa a limpar da bancada e guardar os ingredientes, a outra dedica-se a limpeza dos utensílios, eu listo os ingredientes que deverão ser comprados para abastecer a dispensa.

            — Eva, um grupo de executivos fazem questão de agradecer pessoalmente a chef —  falou todo animado Diego, o gerente, invadindo a cozinha.

             — Eu posso facilmente me acostumar com isso — falei descendo do balcão e caminhando em sua direção.

            — Aproveita que seus dias de madame estão acabando! — Abriu a porta para que eu passasse.

            — Enquanto esse dia não chega, irei brilhar! — Fiz uma cara esnobe. Retirei a touca dos cabelos e amassei os fios curtos repicados, ajeitei a dólmã e conferi minha imagem no pequeno espelho de bolso.

            — A chef gostaria que eu solicitasse uma equipe de cabeleireiro e maquiadores? — Diego perturbou.

            — Se puder acrescentar um massoterapeuta ficarei imensamente feliz!

            — Vamos adiantar logo isso que tenha uma festa para ir depois daqui.

             Assim que adentrei o espaço do restaurante avistei os últimos clientes. Um grupo de cinco homens. A julgar pelo tom elevado da voz e dos risos tinham bebido além da conta. Respirei fundo e assumi a postura de chef.

Belo Mentiroso - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora