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Londres, 27 de janeiro de 1950.

Heaven Bryer

Deixei minha grande bolsa sobre a cama do meu aposento. Os papéis e pastas que eu carregava em um dos braços se espalharam quase descoordenadamente pelo lençol. Tirei meus sapatos rapidamente, balançando o pescoço na tentativa de aliviar o incômodo doloroso causado pelo considerável peso de meus materiais. Assim que empurrei com os pés os saltos altos para um canto ao lado de minha penteadeira, olhei para o relógio que estava sobre ela; este indicava 21h30.

Mais uma vez eu precisara permanecer até tarde da noite no jornal para finalizar todo o trabalho delegado a mim. Após a pequena reunião no escritório do chefe, eu ficara o restante do expediente em minha sala, a deixando apenas no horário reservado para o almoço. As tarefas atrasadas e as que surgiam aos montes a cada volta do ponteiro dos minutos do relógio me ajudaram a manter os acontecimentos da manhã longe de meu pensamento. Ao menos, tentaram.

Absorta em devaneios, liguei o rádio que ficava em meu criado-mudo. Eu o havia ganho como presente de meu pai em meu aniversário do ano anterior. Meu apreço pelas músicas do Elvis Presley tivera início no mesmo período — ouvi-lo cantar suas músicas, das suaves às mais animadas, era como um reconforto para mim. Infelizmente, na programação da minha rádio favorita Elvis Presley não era uma prioridade naquele horário da noite. No lugar das canções agradáveis da última moda, era reproduzida uma rádio-novela de péssima qualidade, a qual eu costumava ignorar sempre que podia.

Relutante em desligar o aparelho, resolvi que esperaria pelo término daquele capítulo. Enquanto retirava o cinto do meu vestido com certa dificuldade, me atentei por um momento no diálogo dos personagens da trama.

Mas, Dean, você não pode partir – uma voz feminina dizia. — E quanto aos nossos filhos? Eles crescerão sabendo que seu pai se foi pela guerra e jamais voltou?

Tirei os grampos do cabelo e os meus brincos e guardei-os em meu porta jóias.

Silvia, não há outra opção — A voz masculina respondia, com enfado. — A pátria me chama para esta luta! Não me renderei jamais!

Balancei a cabeça para a interpretação dos atores. Apesar de um assunto ultrapassado, a guerra ainda se mostrava um evento muito doloroso que permeava a memória do país. A partida dos homens para o serviço na luta contra os alemães, italianos e japoneses, na época, também fora encorajada pelos filmes e, é claro, rádio-novelas como aquela.

A despeito de ter minha opinião formada sobre os terríveis acontecimentos da década passada, eu não sentia que tinha poder suficiente para expô-los a ninguém, nem mesmo a meus pais. Uma mulher não costumava ser ouvida em assuntos políticos, por vezes nem pelas próprias mulheres — quem o diria em tempos de grande crise social, como há pouco mais de cinco anos atrás?

Comecei a retirar a maquiagem com uma pequena toalha de rosto que encontrei sobre a penteadeira. Em seguida, desabotoei meu vestido, um pouco distraída com a discussão do casal, a qual se acalorava forçadamente. Liberta do vestido, atravessei o quarto em direção ao armário. Peguei uma camisola amarela limpa na primeira gaveta. Deixei-a sobre a cama e sentei-me para retirar de minhas pernas a meia calça clara. A camisola passou pela minha cabeça logo depois.

Como não sentia fome, pretendi escovar meus dentes para dormir. Saindo do quarto, me dirigi ao banheiro, atravessando o corredor mesmo descalça. Porém, antes que eu pudesse abrir a porta do cômodo, minha mãe deixou o quarto de Sarah, que ficava uma porta ao lado do meu. Ela vestia uma camisola branca enfeitada de rosas costuradas nos ombros. Estava bonita, apesar de seus cabelos louros enrolados estarem uma verdadeira bagunça.

1950 • h.sOnde histórias criam vida. Descubra agora