Parte 2/10 - As Duas Saídas

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Eu poderia não ter acreditado, poderia ter rido e feito pouco caso, poderia ter gritado e surtado, mas eu preferia pular o estágio da negação. Ergui meu braço esquerdo e encarei o local onde antes havia minha mão, toquei a parte escura da extremidade e o que senti foi surreal e natural ao mesmo tempo, como tudo naquele lugar, eu não senti nada.

— Faz sentido – no fundo eu sabia que estar morta era a única resposta plausível. Apoiei os braços no balcão e olhei para Satayash, desamparada. – E agora?

Ele parecia estar se divertindo muito. Havia brincos na parte superior da orelha dele que cintilavam toda vez que um feixe de luz colorida passava.

— Agora você faz o que os despertados fazem – ele disse com simplicidade -, escolhem qual saída da cidade querem tomar.

— Despertados? – indaguei, a cada palavra eu ficava mais confusa. – Do que você está falando?

— São aqueles que tomam consciência sobre si mesmos e sobre a realidade que os cerca.

Franzi a testa tentando lembrar de algo, parecia uma tarefa difícil.

— Você disse que eu era uma adepta da segunda saída, o que isso quer dizer? Tem algo a ver com as pessoas desaparecendo?

— Isso mesmo. Todos aqui estão mortos, linda, e inevitavelmente sairão por uma das duas saídas, mas somente aqueles que despertam podem escolher a segunda. – Me assustei quando ele gritou: - JÁ ESTOU INDO, POR FAVOR! – havia uma mulher que queria bebida do outro lado do bar, ela não parecia muito disposta a esperar, mas ele voltou-se para mim: – Você pode se sentir especial, Elie, porque somente cinco por cento das pessoas que vêm para cá despertam, e devo acrescentar que nem metade disso escolhe a segunda saída.

Ele pediu licença e foi servir a mulher do outro lado. Sentei novamente em um dos bancos.

Agora a música havia mudado, embora eu não lembrasse de uma pausa entre a outra, nem mesmo o mais breve intervalo. Eu comecei a sentir novamente o chamado, o desejo sorrateiro de levantar e dançar até desaparecer.

Ouvi o estalido de um copo na minha frente.

— Gostaria de um pouco de bebida também? – perguntou Satayash com uma garrafa em uma das mãos.

Olhei para o copo vazio na minha frente, eu queria dizer não.

— Pode servir.

A bebida desceu em espiral para o copo, o liquido tinha cor de caramelo.

— Me conte mais sobre esta cidade. O que são essas saídas?

— Bom, esta cidade é o desejo de todos vocês, ela se adapta de acordo com os cidadãos que recebe e é um reflexo do mundo de onde vocês vieram. — Ele tapou a garrafa e depositou novamente na estante, eu parecia conhecer aquele tipo de bebida, era idêntica àquela na tigela com gelo, uma lembrança apagada da minha antiga vida. — É para cá que todas as almas vêm quando desencarnam, porém, é bom não criar raízes, já que todos vocês sairão desta cidade mais cedo ou mais tarde, por uma das duas saídas. – As mãos inferiores dele trabalhavam para limpar outro copo. – A mais simples, e a que a maioria toma, é o desaparecimento. Existem outros nomes para a primeira saída, como inexistência ou esquecimento, mas são todas a mesma coisa, e você já deve ter visto alguém passar por ela.

Lembrei das pessoas desaparecendo enquanto eu dançava.

— Mas... se o desaparecimento é a primeira saída, e eu sou uma adepta da segunda, como você diz, então porque minha mão esquerda desapareceu?

Ergui o copo e bebi um pouco, o gosto forte e familiar, talvez me ajudasse a lidar com aquilo tudo.

— Geralmente não acontece tão rápido assim, mas você deve ter ingerido um pouco de bebida enquanto estava dançando, tudo o que for comestível nesta cidade acelera o processo de desaparecimento e te leva para mais perto da inexistência.

A Cidade do SilêncioWhere stories live. Discover now