Parte 8/10 - O Triunfo do Oblívio

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Senti o olhar dele queimar em meu rosto, muito parecido com o que havia me dado na lembrança.

Quando eu cheguei naquela cidade, na boate de Satayash, fui dominada pela vontade de desaparecer, mas eu sabia o que queria e sabia o que precisava fazer para alcançar a inexistência. Depois, quando entrei na igreja de Belzebel, meu objetivo era recuperar minha memória e despertar Débora a qualquer custo, então eu sabia o que realmente queria e o que estava fazendo. E quando o Oblívio tentou me levar de novo enquanto tentava encontrar Satayash, e até mesmo quando entrei naquele hotel, eu ainda sabia o que fazia e o que queria. Em todas essas ocasiões, mesmo que em algumas dominada por uma força externa, eu estava fazendo alguma coisa, eu estava querendo alguma coisa. Eu reagia.

E agora me encontrava petrificada, sem saber o que fazer ou pensar.

Tomei consciência disso ao mesmo tempo que dois sentimentos se digladiavam dentro de mim, e nenhum deles era bom. De um lado havia a raiva, ela exigia a violência, uma retaliação, me fazendo querer virar e gritar para ele: "FOI VOCÊ QUEM ME MATOU! FOI VOCÊ!". Mas conforme aquele sentimento ganhava força, eu também sentia alguma coisa que vinha de brinde, alguma coisa quente que queria escorrer pelo rosto, e sabia que se continuasse a considerá-lo a represa iria se romper...

Do outro lado havia o sentimento mais primitivo de todos. O medo. O medo de mim mesma, o medo do que eu tinha feito. Eu matei alguém. Foi isso que ele tinha descoberto na recordação. Eu matei alguém. Aquela certeza estava tão clara que parecia fazer parte de mim mesma todo aquele tempo. Mas quem? Era possível que eu tivesse matado uma das minhas colegas de classe e que ela fosse parente dele? Então isso mudava tudo...

― Mas você não ia perguntar...? – indagou a voz que eu não queria ouvir.

Os dois sentimentos estavam numa luta acirrada para tomar posse do pouco que restava da minha existência. Como eu disse, nenhum deles era bom.

Então fiz a única coisa que as pessoas fazem quando não sabem o que fazer. Quando não sabem o que realmente querem.

Uma parte de mim se isolou no fundo da minha essência. A outra parte dissimulou.

― Não – minha voz saiu firme. – Eu preciso continuar buscando as outras lembranças. Preciso saber quem eu fui.

― Do que você lembrou? – perguntou Débora.

Dei a ela um sorriso nem um pouco convincente.

― Foi só mais uma sessão com psicólogo, e foi tão confusa quanto as outras lembranças.

Ela pareceu não acreditar, mas manteve silêncio.

Morfélia me fitava com uma expressão estranha, como se soubesse que eu estava mentindo. Eu queria perguntar a ela se eu poderia finalmente escolher entre as duas saídas, já que tinha recuperado a lembrança da minha morte, mas no fundo eu sabia a resposta: aquela lembrança não tinha sido a conclusão. Aquela cidade jamais me deixaria passar pela segunda saída sem me mostrar a pessoa que eu tinha matado.

― Então quer dizer que vocês já estão de partida? – perguntou Morfélia.

― Acho que sim... – ele disse.

― Bom, espero que tenham gostado da minha hospedagem. E, por favor, se encontrarem algum outro despertado, informem a ele sobre este estabelecimento. É muito solitário quando fico sem hóspedes, e isso acontece com muita frequência. Nesse exato momento tenho apenas...

A Cidade do SilêncioWhere stories live. Discover now