Crianças à venda. Tratar aqui

936 46 8
                                    

Todos disseram que Marialva era louca e desalmada quando ela pôs os filhos à venda. Até o padre tentou demovê-la de ideia tão cruel. Mas nada adiantou. A mulher era obstinada. “Quero que eles tenham um futuro melhor que o meu”, ela repetia.

Olhando bem para o lugar, quem poderia condená-la? Um casebre miserável, perdido numa curva do rio, sem eletricidade, sem comida, sem dinheiro, sem remédio, sem nada por perto. Tinha parido nove filhos. Só restavam cinco quando decidiu vendê-los. Não queria mais ver criança morrendo de fome e doença em seus braços sem que pudesse fazer nada para impedir.

O primeiro a partir foi Tião, levado por uma família americana. Um mês depois da viagem, chegou carta com foto do menino, limpo e sorridente, bem vestido e já mais gordinho, no meio de brinquedos e livros novos, e abraçado a seus novos pais. Marialva enxugou as lágrimas e teve certeza de que fazia a coisa certa.

Em seguida, foram Francineide, para o Rio de Janeiro, e Ronivon, para Curitiba.

Com o dinheiro da venda dos três, Marialva comprou uma cabra, três galinhas, um cobertor para as noites frias, sabão de tomar banho e uma panela nova.

O seguinte seria Fabiojunio, que já estava encomendado por uma família que vivia em Cruz Alta, uma cidade próxima. O casal chegaria dali a dois dias e Marialva se esforçava para dar banho no menino e torná-lo mais apresentável.

— Vê se não chora quando eles chegarem, senão eu te mato, viu? E nada de se sujar porque o sabão já está acabando. Tem que ficar limpo até depois de amanhã. Melhor nem se mexer muito, fique quieto dentro de casa.

Fabiojunio olhava os preparativos meio assustado. Mas as fotos dos irmãos cercados de conforto, carinho e comida já o tinham convencido. Tanto Tião quanto Francineide e Ronivon pareciam muito felizes. Assim, quando chegou o casal, despediu-se da mãe e de Simara — a irmã mais velha —, engoliu o choro e entrou no carro de seus novos pais.

— Mãe, a senhora não achou esses dois aí meio esquisitos, não? — perguntou a menina assim que o carro sumiu na estrada.

— Bobagem, menina. Rico é tudo esquisito mesmo. 

Mas, no fundo, achou que a filha tinha razão. Não sabia dizer direito o que era — se a expressão meio vazia do casal, o jeito que eles tinham de olhar, meio fixo, sempre para frente, a maneira de se moverem, lenta demais.

"Bobagem", repetiu mentalmente. Eram os mais ricos, os que tinham pago mais caro. Olhou para as notas em cima da mesa. Dava para comprar um monte de sabão e botar Simara para lavar roupa para fora.

O problema era justamente a filha, que não parava de tagarelar. Menina inconveniente. Tinha dez anos, só por isso não dava mais para vendê-la. Ninguém queria criança grande assim. Pois que ficasse quieta e ajudasse a fazer o dinheiro render — porque aquele era o último.

* * *

Isso era o que Marialva pensava. Menos de um mês depois da partida de Fabiojunio chegou uma carta. Trazia uma foto do menino e mais dinheiro ainda. A mulher ficou radiante.

— Eles devem estar mesmo muito encantados com Fabinho para mandarem essa dinheirama toda — disse ela arregalando os olhos.

Simara, sempre desconfiada, examinava a fotografia.

— Mãe, olha só…

Mas a mulher arrancou a foto de sua mão.

— Olha só digo eu, Simara! Sempre foi lindinho, o seu irmão. Mas com essas roupas… Benza Deus! Parece um príncipe.

Na foto, o menino estava de pé, em meio a um imenso jardim sem flores, mas com o gramado muito bem cuidado, ao fundo do qual se via um casarão com a fachada ornamentada. Vestia sapatos pretos de verniz, meias brancas, terninho azul-marinho combinando com a bermuda, camisa branca de colarinho e gravata de cetim cinza-claro. O cabelo estava penteado para trás, cheio de goma.

Sete ossos e uma maldiçãoWhere stories live. Discover now