Dentes tão brancos

359 24 0
                                    

        Andréia entrou em casa às três da manhã e encontrou sua mãe em pânico.

  — Minha filha, o que aconteceu?

  — Não sei.

    Não era mentira. E estava perturbada demais para inventar uma desculpa qualquer.

  — Como não sabe? Você sai de casa dizendo que vai a uma festa na casa da Mariana, desaparece sem dar notícias, deixa todo mundo preocupado e ainda diz que não sabe?

    A mãe estava realmente furiosa.

    — Eu fui à festa na casa da Mariana — defendeu-se Andréia.

    — Como foi se ninguém viu você lá?

    — Eu estava lá — insistiu a menina.

    — Até agora? — berrou a mãe, que, evidentemente, não acreditava na versão da filha.

    — Até agora.

    — E pode explicar como nem a Mariana, nem as suas amigas, nem ninguém viu você na festa?

    A mãe era um puro desatino. Andréia nunca tinha feito uma coisa dessa antes. Mas parecia que o bom comportamento pregresso não lhe trazia nenhuma vantagem.

    O fato é que Andréia não sabia dizer o que tinha acontecido. Não que lhe falhasse a memória. Lembrava bem cada detalhe da noite. O problema era encontrar as palavras. Sentia-se esquisita, flutuante, como se tivesse sido jogada num mundo totalmente desconhecido. Estava com medo. Muito medo. Mas não saberia explicar exatamente do quê. Apenas sabia que uma coisa terrível tinha acontecido. Alguma coisa cujos desdobramentos ainda não conseguia prever.

    Tentou reordenar os fatos da noite em sua mente. Talvez assim conseguisse uma explicação para tudo aquilo.

 * * *

   Tinha chegado cedo à casa de Mariana. A festa ainda não tinha começado, e a amiga estava no quarto se arrumando. Dirigiu-se ao jardim, que estava especialmente bonito para a ocasião. Não que fosse uma festa especial, não era. Mas Mariana transformava qualquer reunião de amigos num grande baile. Não lhe faltava dinheiro para isso. Nem bom gosto. Nem criatividade.

    A festa do dia era à fantasia e tinha como tema a Morte. Cada qual deveria imaginar uma maneira interessante de passar dessa para melhor e inventar uma fantasia que combinasse com sua idéia.

    Marcelo já tinha avisado que iria de pijama: queria morrer dormindo. Mirela providenciaria trajes de aviadora: achava lindos os acidentes trágicos. Beatriz aplicara dúzias de camélias em seu vestido, em homenagem à Dama das Camélias, a pianista que tinha sido levada embora pela tuberculose.

    Andréia pensara em alguma coisa bem romântica. Queria morrer de amor. Dissolver-se em paixão. Por isso, decidiu alugar um traje de época, um luxuoso vestido que imitava os usados no século XVI, decotadíssimo, armadíssimo, muito sensual.

    Prendeu os cabelos cacheados num coque no alto da cabeça, deixando à vista a nuca. Pegou o pó-de-arroz da mãe e passou uma generosa camada no rosto, no colo e no pescoço. Ficou branquíssima. E linda.

    Agora sim, parecia uma musa de poeta romântico, dessas que morrem virgens, jovens e belas, e carregam para o túmulo o coração do amado. Pelo menos, era assim que se sentia quando chegou à casa de Mariana.

 * * *

    Como a amiga ainda não tinha descido, decidiu circular pelos jardins, ainda desertos àquela hora. Havia apenas alguns músicos que terminavam de montar seus instrumentos no palco armado em meio ao gramado. Assim que se aproximou, teve sua atenção voltada para um deles, um jovem de beleza incomum que ensaiava algumas notas ao violino enquanto o resto do grupo ligava fios às caixas de som. Alto, magro, com cabelos ruivos que lhe caíam até a cintura e vestido com um smoking, o rapaz parecia indiferente ao atarefamento dos colegas. Tocava, de olhos fechados, uma melodia capaz de emocionar qualquer pessoa, até mesmo Andréia, mais chegada a um rock, um metal pesado ou qualquer coisa que tivesse mais ritmo do que som.

Sete ossos e uma maldiçãoWhere stories live. Discover now