Morte na estrada

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Por favor, não me entenda mal. Mas não gosto de meninas. Acho esquisito o jeito delas, sempre gritando demais, rindo demais, olhando a gente e cochichando. Sempre acho que estão rindo de mim. Tenho alguns colegas que já beijaram. Eu tenho nojo. E também medo de que a menina ria de mim.

Mas esse medo foi a minha perdição. Vou contar o que aconteceu.

Imagino que todo mundo conheça a história da assombração da estrada. Eu conhecia desde pequeno. Meus pais também. Era assim: uma família viajava de carro quando surgia uma mulher desesperada à beira da estrada. Pedia socorro, dizia que tinha um carro caído na ribanceira próxima dali com três crianças feridas dentro dele. A família parava e ia até o local. Ao chegar lá, descobria um carro acidentado. De fato, havia três crianças feridas, mas vivas. Ao volante, estava a mãe delas, morta — e era a mesma mulher que tinha pedido socorro na estrada.

O fato de já ter escutado a história inúmeras vezes não livrou nem a mim nem a minha família de passarem por uma situação muito parecida.

Voltávamos de viagem. Uns dias muito divertidos no sítio de um amigo de meu pai. Vínhamos, no carro, ainda relaxados, brincando e já fazendo planos para o próximo feriado. Estávamos a pouca distância de casa quando vimos uma mulher na beira da estrada. Era bonita, bem vestida, do jeito como se arrumam as mulheres elegantes mesmo quando estão de férias. Calça jeans, camisa branca, cabelo comprido preso num rabo-de-cavalo, poucas jóias. Mas não foi nada disso que nos chamou a atenção. Foi o desespero dela.

A mulher gesticulava, chorava, gritava, tudo ao mesmo tempo.

Meu pai quase passou por ela sem parar, mas minha mãe gritou:

— Pelo amor de Deus, Luís! Vamos socorrer a mulher!

Ele nunca contrariava minha mãe.

Assim que parou o carro, uns dez metros adiante, a mulher veio correndo até nós. Chegou com os olhos arregalados, sem fôlego.

— Um acidente! Um acidente terrível! — dizia ela enquanto apontava para baixo de um barranco que margeava a estrada.

Antes que ela completasse o que queria dizer, minha mãe saltou do carro e correu na direção em que a mulher indicava.

— Corre, Luís! Tem mesmo um carro lá embaixo! — gritou minha mãe, aflita.

— As crianças! Três crianças lá dentro... — completou a mulher, ainda arquejando.

Meu pai largou o volante e dirigiu-se para o local, seguido de perto por minha mãe e por mim. Não olhamos para trás, para ver se a mulher nos acompanhava.

Não acompanhava.

Ao chegar lá, o rosto angustiado, com o rabo-de-cavalo desfeito pelo impacto, mas os olhos tão arregalados de pavor como tínhamos visto na estrada, era o da mulher ao volante.

Morta.

E, de fato, no banco de trás, três crianças choravam. Estavam machucadas, mas vivas.

Nem vou me dar ao trabalho de descrever como foram as horas seguintes. Telefonemas, ambulância, hospital, uma confusão terrível. Só muito tempo depois, chegaram os avós dos meninos - que aliás, eram dois meninos e uma menina da minha idade - e tomaram conta de tudo, assim pudemos voltar para casa.

Levou um bom tempo para que as imagens do acidente e da mulher assombrada saíssem da minha cabeça. Uns três anos, acho. Não que eu tenha esquecido a história, mas parei de ter pesadelos, o que já era alguma coisa.

Um dos mais frequentes era uma cena que acontecera no hospital. A situação já estava sob controle, os médicos começaram a chegar e a levar as crianças para a enfermaria. Foi quando a menina, cujo rosto eu não conseguia ver direito, porque estava muito machucado, agarrou-se em mim. Ela me abraçou, agarrou meu pescoço. Estava muito assustada. Eu também. Mas achei que ela queria me beijar.

Sete ossos e uma maldiçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora