4 / O QUARTO CAUBÓI

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Todo mundo ouviu um barulho de pisadas vindo do mato, ainda era madrugada. Jean foi passando a mão na coronha da espingarda. Joaquim, arregalando os olhos, apertou o braço dormente de André. Todos já tinham as armas em punho quando o mato se mexeu. Alguma coisa se aproximava, e quanto mais perto ficava, mais Joabe erguia a mira.

— Ô! Não atira, não. Sou eu.

Era só aquele peão, o Gustavo. O que foi até a estância avisar Jorge da vaca parida. Tinha decidido não só levá-los ao local onde encontrara o animal e sua cria, mas também acompanhá-los naquela noite de acampamento. Qualquer coisa poderia acontecer, e ter uma espingarda a mais no grupo era sempre bom.

Sua lógica foi acatada, mas já fazia umas boas horas que Gustavo tinha se enfiado pelo mato. Nem contavam mais com ele quando ele reapareceu. Tinha um inhambu, ave noturna, morta, pendurada no ombro e a peixeira reluzente na cintura. Disse que tinha ido caçar, que as coisas lá com o seu patrão não estavam boas... E desse assunto, passou a outros piores. Assuntos de fome e de dificuldades comuns na vida daqueles homens.

Agachando ali perto dos demais, perto do fogo, o tal Gustavo começou a contar a sua história. Jorge, que tinha a visão meio turva de sono, se empertigou depressa para ouvi-lo. Precisava mesmo ficar acordado, de toda forma. Jean e André fizeram o mesmo e logo estavam entrando na conversa do outro. Joaquim dormia, e Joabe, curioso como era, não perdia uma só palavra do que falavam, embora mantivesse os olhos fechados num sono fingido.

O peão falou de um tempo que não era bonito. Que tinha passado por muito perrengue e saído ileso só de alguns. Pegou a inhambu do ombro como se pegasse um troféu, e falou mal do seu patrão, do tratamento que o patrão lhe dava, que dava aos outros lá na sua fazenda. Não que fosse homem ruim de todo — contava, resignado —, mas trabalhar para ele era o mesmo que labutar por nada.

Gustavo contou que o velho tomou ódio dele por ter se atracado lá com a sua enteada, uma morena que vivia largada pelos cantos, mas muito bem-feita de corpo, dengosa. O velho não gostou do romance, não. Disse logo que ia capar o peão se não largasse menina. E não teve jeito, o Gustavo teve mesmo que separar da moça. Córdobas a mandou para a capital, dizia que não confiava no gênio dela. Que mulher era tudo sem-vergonha oferecida, que logo embarrigava. Então a vida do Gustavo passou a ser vazia, sem um dengo pra chamar de seu, sem um passatempo. Não bastasse, o patrão também começou a marcá-lo. Gustavo recebia qualquer merreca se merecesse, se o trabalho fosse bem-feito. Senão, que se virasse por conta. Esse era o gênio de Getúlio Córdobas, e, enquanto trabalhasse para ele, restava dançar conforme a sua música.

— Não pensava que o velho fosse assim, não — comentou o Jorge, acendendo um cigarro no beiço seco. — É bicho ruim mesmo...

— Eu também não, seu Laerte — o peão disse. — No começo ele me tratou bem, sabe, me acolheu mesmo. Mas começou a apertar as coisas depois disso. Já tinham me falado que ia ser assim, eu que dei bobeira.

E por um tempo o silêncio baixou sobre eles, cobrindo a noite de um embaraço de pena. Ninguém sabia o que dizer, nem Jorge, nem Jean, ninguém. Gustavo segurou a ave morta, um olhar triste. Era o primeiro prato de carne que via na semana toda.

De história sofrida o mundo estava cheio, e a de Gustavo não era pior nem melhor que as tantas outras. Mas Jorge pensou bem antes de dizer besteira. Não queria contendas com o vizinho Córdobas, muito menos por causa de um peão fuleiro que nem bem conhecia. Falou, embora com alguma cautela:

— Lá na minha estância a gente bem que precisa de um cabra a mais, sabe? Pra ajudar nas coisas. Mas tem que ser bom. Mexer com gado, com cavalo, saber lidar com as crias... — Jorge fez uma pausa, olhava o peão direto nos olhos. — Se eu oferecer o emprego, tu dá conta?

No Colo dos CaubóisWhere stories live. Discover now