.4. faço um amigo no caminho

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Dead man's hand / La belle fleur sauvage

      Muito tempo se passou. Não sei ao certo quantos dias foram, mas acredito que tenham sido meses. Esse tempo pareceu infinito, mas também passou num piscar de olhos. Desisti de te procurar, te deixei ir. Saí pelo mundo de novo, sem saber para onde ia. Enquanto tentava manter os olhos abertos, avistei e, depois conheci, alguém que nunca achei que fosse possível.

      Era um jovem, de mais ou menos vinte anos. Usava camisa xadrez e calça jeans surrada, seu cabelo estava penteado para trás. Andava carregando suas botas nas mãos e parecia completamente perdido. Quando se virou, a princípio seu rosto era um borrão para mim. 

      - Precisa de uma carona? - Perguntei, parando o carro ao seu lado. Apesar de ainda ter o rosto borrado, percebi que sorriu.

      -Estamos indo para lados opostos. - Ele respondeu. - Estou perdido há tanto tempo... Só sei estar vivo, não sei morrer.

      Ah, ele estava morto. Isso explicava muito sobre seu estado. Estávamos indo para lados opostos porque ia para onde havia acabado de sair, para a tal cidade fantasma da qual eu fugia. Decidi levá-lo até lá, simplesmente porque parecia o certo a fazer.

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      O homem morto tinha pressa. Não houve um minuto sequer em que não buscasse algo para fazer com as mãos, ou balançasse as pernas, ou então perguntasse se estávamos chegando. Não entendia por que um morto tinha tanta pressa de viver.

      -O que está procurando que o deixa tão aflito? - Perguntei o que queria desde o minuto em que ele havia entrado no carro.

      -Minha garota. Faz um bom tempo que sumiu, passei o resto dos meus dias procurando por ela. - Suspirou, olhando para a estrada. - E pelo visto, vou procurá-la até depois dos meus dias, se é que isso vai durar por muito tempo.

      -Sua garota sumiu? - Ri. - Bem-vindo ao time.

      Foi quando algo perturbador passou pela minha cabeça. Apesar de não ver seu rosto, me via um pouco no homem morto. Sua forma de se vestir, falar, pentear o cabelo pra trás, ou até mesmo, a história que ele havia acabado de contar. Éramos muito parecidos, o que encarava como, no mínimo, uma coincidência assustadora. Percebi que não sabia seu nome, e, quando me disse, quase não acreditei. Ben. O homem morto também se chamava Ben, Louise.

      Quando olhei para seu rosto de novo, vi que o borrão saía aos poucos, como uma neblina sendo levada pelo vento. Voltei a olhar para frente e assim permaneci durante todo o trajeto – a ideia de conhecer o seu próprio fantasma era um pouco difícil de aceitar de primeira.

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      O sol já havia nos deixado quando resolvemos parar para descansar. Pensei se ele gostaria que o enterrasse. Achei que sim e comecei a cavar a sua (ou minha?) cova, porque parecia o lugar que um morto dormiria. Certo? O céu estava coberto de estrelas; aliás, no deserto, era possível ver muitas delas (acredito que por ter menos poluição). Fizemos uma fogueira e peguei o resto de mantimentos que ainda tinha no porta-luvas.

      -Não, obrigado. Desde que, você sabe, estou morto, não sinto muita fome. - Disse, devolvendo-me o pacote e se acomodando na cova.

      Notei que estava triste, e tentava pensar numa forma de animá-lo. Só uma coisa passava pela minha cabeça, no entanto:

      -Por que não me fala um pouco sobre sua vida? Sobre a sua garota... - Pensei em perguntar sobre a forma que tinha morrido, mas não achei ser uma boa hora. - Sobre o que quiser. Temos todo o tempo que quisermos.

      -Acredito que meu tempo já tenha se esgotado, na verdade. - Ele riu. Não um riso feliz, mas sim um daqueles que revelam toda a dor guardada no peito. - Apesar de não ter vivido muito, conhecê-la fez tudo valer a pena. – Eu bem sabia o que ele queria dizer. - Depois dela, nenhum homem continua o mesmo. Ela é como uma tatuagem, está marcada em minha pele e não há quem a tire daqui. - Enxugou uma lágrima, que rolava por sua bochecha. - Queria que estivesse ao lado da minha lápide, mesmo que eu seja o único a se lembrar dela.

      -Como o único? Todos da cidade a esqueceram tão rápido?

      -Não a esqueceram, só nunca a tinham visto. Não faziam ideia de quem era a garota esguia, de cabelos loiros e olhos da cor do pôr do sol da qual falava. - Estava desesperado. - Mas eu a vi, juro que a vi! O que tivemos foi real, sei que foi.

      Um desespero começou a subir para a minha garganta. E se ninguém se lembrasse de você? E se também me falassem que não existiu? Disse a ele que acreditava em sua palavra, juro que seus ombros até pareceram mais leves.

      -Gostaria que alguém tivesse acreditado em mim antes. Tentaram me fazer acreditar que estava louco! Esquizofrenia, disseram. Do mais grave dos casos. - Acomodou-se melhor na terra. - E minha morte? "Causa cardiogênica", seja lá o que isso queira dizer. Não me importo, porque não acredito na palavra deles. Fizeram-me desistir de procurá-la, e agora não tenho para onde ir. Perdi tudo por pessoas que não acreditaram em mim e agora estou aqui, no deserto, com a minha versão viva.

      -Mesmo que isso não faça nenhum sentido. - Disse enquanto procurava a sacola para jogar fora o lixo. Ele riu. - Pode ser que ainda tenha tempo para procurá-la.

      -Acredito que não. - Seu olhar passou de desesperançoso para um daqueles logo depois de pensar em algo genial. - Mas o seu tempo ainda não se esgotou, talvez você possa mudar a nossa história.

      Não me parecia má ideia. Deixei que você partisse, mas não precisava de muito para que minha vontade de encontrá-la voltasse. A isso dedicamos nossas últimas horas juntos: um plano para vê-la de novo.

      Ben se levantou, era hora de sair da cova. Decidiu que vagaria pelo deserto até que encontrasse o caminho para chegar a algum lugar. Como disse antes, não sabia morrer, só sabia estar vivo - na escola não te dão aulas sobre o que fazer depois da morte.

      Levantei-me também e entrei no carro. Precisava te encontrar, e logo. Acenei para ele antes de dar partida, e ele acenou de volta, com sua mão de homem morto. 

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Lost in your strange trailsWhere stories live. Discover now