Prólogo

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Suas botas afundavam na neve ao caminhar, o rei estremeceu e não era por conta do clima, mas pela tarefa que teria de cumprir

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Suas botas afundavam na neve ao caminhar, o rei estremeceu e não era por conta do clima, mas pela tarefa que teria de cumprir. Eram tempos sombrios, feiticeiras e bruxos esgueiravam-se pelas florestas realizando cultos. Eles roubavam, lançavam doenças e afundavam o Reino da Noite. Serviam divindades bárbaras, ofereciam sacrifícios e, em troca, recebiam dons sórdidos maculados com obscuridade. A caça foi uma medida inevitável e ali estava Breandan Ravengott prestes a confrontar Minuit.

Os galhos das árvores se elevavam retorcidos, cravando as extremidades no céu salpicado de estrelas. Brendan fitou os pontos celestes, temendo que fosse pela última vez, tomou fôlego e voltou os olhos para gruta diante de si; a entrada era apertada e baixa, com crânios de corvos amontoados e parcialmente cobertos pela neve. Seu corvo, Anoitecer, remexeu-se instintivamente em seu ombro e recebeu um afago.

— Vamos — ordenou aos soldados.

Entraram no covil, com cautela, gotas desprendiam-se do teto, lançando ecos que soavam como murmúrios agourentos. Os homens avançaram por entre as rochas, tropeçando no chão irregular. Ao se aprofundarem, deparavam-se com objetos intrigantes, como ramos de plantas ressecadas e alguns cristais, também viam desenhos de símbolos desconhecidos e amuletos feitos de penas negras e ossos de aves.

Pararam perante a um altar, onde havia uma tigela de argila repleta de um líquido escuro e espesso, que parecia ser sangue, e uma gaiola com um corvo definhando dentro. Em uma das extremidades repousava um cálice de vinho, na outra, um punhal de prata cravejado de obsidianas e, no centro, um livro aberto; mas o rei não conseguiu ler a página, uma risada o interrompeu. O som alertou os soldados que empunharam as espadas em uma posição defensiva.

— Renda-se, bruxa! — gritou, vasculhando ao redor e vendo somente pedras.

A resposta foi uma gargalhada que repercutia pelas paredes, num jogo de sons que dava a impressão de que Minuit estivesse em todos os lugares.

Um arrepio surgiu na base da espinha do rei e percorreu toda a coluna, dificultando-lhe a respiração, que se tornou ruidosa. Antes que ele pudesse procurá-la, um bando de corvos surgiu do fundo da gruta, engolindo-os em um turbilhão de penas, bicos e garras. As aves não eram feitas de carne e osso como Anoitecer, e sim, de sombras que pulsavam brutalidade.

— Ravengott, não é irônico? Os corvos serão seu pior inimigo — um compilado de vozes dizia, algumas eram ríspidas e outras não passavam de sussurros.

A bruxa atravessou as aves, atirando-se sobre o rei. Minuit há tempos não era alguém comum, as forças ocultas consumiram sua essência, e isso era evidente nos cabelos negros, destoando-a dos demais noturnos que possuíam fios prateados.

— Homenzinho pequeno — sibilou no ouvido dele, ao sufocá-lo com a mão em torno de seu pescoço. — É tão pequeno, Ravengott.  — Sorriu e passou a língua sobre os dentes afiados.

Os pulmões de Breandan ardiam e pontos pretos surgiam em sua visão, indicativos de que estava prestes a ficar inconsciente. De repente, sentiu o peso do corpo de Minuit sendo removido, um soldado conseguiu chutá-la para longe.

— Está ferido, majestade?

— Estou bem. — Sorveu o ar em grandes golfadas. — Vamos prendê-la!

Não teve tempo disponível para levantar, pois as aves já estavam rasgando qualquer parcela de pele visível. Além disso, outra coisa capturava sua atenção, um tremor vinha do chão e se espalhava pela gruta, fazendo as estalactites se soltarem e uma rachadura surgir, cortando a parede oposta. A estrutura era frágil demais para suportar aquele caos.

— Saiam! — orientou, prevendo a possível catástrofe.

— Fujam, ratos covardes! — ela rosnou.

Energia negra se prendia às costas ossudas em uma massa sólida, formando um par de asas que mal cabia no espaço confinado.
Novos pedaços do teto caíram, contudo, ela não se dava conta desse fato, distraída conduzindo a horda de corvos. Com ajuda de seu poder, pegou dois soldados no ar e os arremessou, o som dos ossos quebrando causava náuseas, porém, o do teto desfazendo-se era mais assustador. Um dos homens arremessados atingiu um ponto crítico da rachadura e tudo vinha abaixo.

— Retirada!

Fizeram uma fila para passarem pelas partes mais estreitas e largaram a bruxa e os corvos para trás. Atravessaram a pequena abertura e a gruta desmoronou, levantando uma poeira ocre consigo.

O vento frio surgiu bem-vindo, após tanto tempo respirando o ar parado, Breandan alegrou-se por esta pequena dádiva, no entanto, o sentimento gratificante não permaneceu em seu coração. Nem todos os soldados conseguiram escapar e os restantes prostraram-se em silêncio, em respeito aos mortos.

Passados alguns minutos, puseram-se a remover os escombros, procurando por soldados e também pela bruxa. Breandan não demorou a deparar-se com uma mão pálida com unhas longas.

— Encontrei, ajudem-me!

Retiraram os detritos que a cobriam e arrastaram-na para superfície. O rei abaixou-se com o intuito de dar fim ao corpo, porém, os olhos dela abriam e eram completamente negros. Ela o segurou com força pela nuca, enterrando as unhas na pele, obrigando-o a encarar aquelas órbitas perturbadoras. Ele não conseguia desviar-se dos olhos que escondiam um monstro em suas sombras.

— A casa dos corvos perecerá — os lábios finos e rachados proferiram, com a voz que era a junção de muitas outras. — Guerra, morte e justiça!

— O que está dizendo, bruxa?

— Guerra, morte e justiça.

Minuit tossiu, espasmos reverberaram pela figura esquelética e ela se tornou imóvel. O negro dos cabelos escorreu em uma água pútrida, da raiz às pontas e subiu pelos braços de Breandan, feito uma serpente, deslizando gélida sobre a armadura. O coração dele batia rápido, mas o restante do corpo estava petrificado; os membros dormentes não obedeciam aos comandos e ele assistiu inerte àquilo infiltrando-se em seu peito.

— Ah! — Esfregou o local atingido, a sensação era de ser apunhalado com uma faca.

— Majestade! — Os soldados tentavam acudi-lo.

Cambaleou um pouco, antes de firmar-se de pé, então observou a mulher que jazia no chão; os cabelos voltaram a ser prateados, o mal estava dentro dele.

— Vamos queimá-la. — Levou a mão ao peito num gesto instintivo.

— Como quiser, majestade.

Deu as costas e partiu, fingindo confiança, apenas quando colocou alguma distância, permitiu-se transparecer o horror que o consumia. Não conseguia crer que seria o responsável pelo fim dos Ravengott.

1. Corvo da Meia-Noite [DEGUSTAÇÃO]Where stories live. Discover now