01. O Cinza torna-se Vermelho.

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"O cinza, então, torna-se no vermelho como a água há de virar vinho, na mudança drástica que todos anseiam durante toda a vida."


Samanda, 2020.

Jude's, 00h00.

— Este é o quinto, Jimin.

Eu sabia.

E as últimas duas horas marcavam o tempo necessário para que as doses ingeridas dilacerassem meu esôfago a cada sentença vocalizada pela figura ao lado. Muitas foram as paráfrases que cuspiu, um produto previsível do seu teatro, bancando o preocupado ao citar meus pais ou imitar a forma como me repreendiam para soar responsável e maduro, mesmo quando ambos sabíamos quão distorcidos eram seus valores e motivações para me fazer companhia em saídas de domingo.

Seria comovente se não o conhecesse há bons anos. Todo aquele espetáculo particular sobre como eu deveria parar de beber tanto era somente uma desculpa dentro do seu leque interminável de pretextos ridículos para começar uma confusão, sempre naquele complexo doentio de caçar motivos para me deixar sozinho e, no dia seguinte, encher minha caixa de mensagens com textos cansativos e munidos da mesma ladainha habitual, objetivando me atribuir a culpa por tudo de ruim que nos acontecia.

"Você é a causa de todos os pontos negativos do nosso namoro. Espero que saiba disso."

A íntegra daquele relacionamento era um ponto negativo.

O motivo da minha ingestão desenfreada de álcool tinha nome e sobrenome: Do Kyuhyun, meu namorado. Acumulando todo aquele tempo de relacionamento, nenhum de nós precisava estabelecer mais que um raciocínio simples para entender que minha compulsão alcoólica se dava pela incapacidade de permanecer sóbrio na presença de sua conduta abusiva, permeada por todos aqueles mecanismos de controle e psicologia reversa.

Há algum tempo incalculável, meu título de namorado rapidamente cedeu ao de posse. Sua companhia já não era agradável, seus beijos não me davam frio na barriga e sua mão na minha cintura não se configurava como nada além da forma mais viável de mostrar que me tinha, como um alerta tosco e soberbo para que outros caras mantivessem distância.

A razão para que eu ainda suportasse estar com ele era desconhecida. Nenhuma pessoa devidamente sã submeteria os próprios valores e sentimentos às dadas circunstâncias; ainda assim, lá estava Park Jimin, doando a si mesmo sem decifrar o porquê. Àquela altura do campeonato, a única conclusão lógica era a de eu buscava fazer com Kyuhyun o mesmo que fazia com todos os obstáculos da minha vida: empurrar com a barriga.

— Que porra, Jimin?! — Sua voz petulante chegava embolada aos meus tímpanos. — Vai tomar a sexta dose? Virou a porra de uma vagabunda irresponsável?

— Não fode, Kyu. — De petulância eu entendia bem, então virei a dita dose num único solavanco, chacoalhando a cabeça em resposta à ardência na garganta. Momentos de bebedeira eram os únicos onde eu tinha o mínimo de disposição para rebater suas constatações egoístas. — Se fosse para encher a porra do saco, era melhor nem ter vindo!

— E você viria como, idiota? De ônibus? — Ergueu a sobrancelha, prepotente. — Você sabe que precisa de mim para voltar. Não vai entrar no meu carro desse jeito.

— Que se foda a droga da sua lata-velha! — esbravejei, recheado da ousadia que originalmente não me pertencia, mas à manifestação do álcool no meu sangue. — Se ama tanto esse carro fodido, vai com ele pra bem longe de mim, seu pé no saco! Me esquece!

Dentro de poucos segundos, nossa pequena discussão se ramificava em cochichos paralelos por entre as mesas do Jude's, atraindo atenção indesejada. Ainda que ciente do show desnecessário, eu estava tão inerte pelos efeitos do álcool que não me restavam quantidades eficientes de neurônios funcionais para dar importância à plateia. Não era a primeira vez que passava por algo parecido — certamente não seria a última —, portanto, meu desejo momentâneo era que Kyuhyun sumisse junto de seu carro velho para um lugar bem longe de mim — algumas boas e generosas léguas marítimas, se me fosse permitido escolher.

VERMELHO DO CAOS • jjk + pjmOnde as histórias ganham vida. Descobre agora